24 de maio de 2015

Roubada e apreendida, arma volta para o crime



Trajetória de revólver usado em roubos em SP revela ciclo de arsenal recolhido
Estudo mostra que armas de bandidos são de origem legal, fabricadas no país e anteriores a estatuto
REYNALDO TUROLLO JR.DE SÃO PAULODuas vezes desviado, duas vezes nas mãos do crime, duas vezes apreendido.
O revólver Rossi calibre 38, de corpo preto, cabo de madeira, número D585777, deixou a fábrica no Rio Grande do Sul no início da década de 1980 e veio a ser registrado por uma empresa de segurança privada de São Paulo.
A história dele sintetiza os resultados de um estudo do Ministério Público paulista e do instituto Sou da Paz, lançado recentemente, que rastreou 2.031 de todas as armas (4.289) apreendidas em roubos e homicídios na cidade de São Paulo em 2011 e 2012.
A maior parte das armas usadas por criminosos é nacional, já foi legal -muitas registradas em São Paulo- e de fabricação anterior a 2003, quando o Estatuto do Desarmamento restringiu o porte e a posse desses artefatos.
O Rossi 38 foi roubado em 29 de maio de 1998 pela primeira vez. Um jovem de 19 anos, com uma pistola, entrou à tarde numa agência de banco em São Vicente, no litoral paulista, rendeu dois vigias e roubou as armas deles. Uma delas era o Rossi.
Um mês depois, o revólver foi encontrado no guarda-roupa do ladrão -conhecido entre os policiais por outro roubo a banco e que, segundo os registros, assumiu o assalto. Estava com uma bala a menos, segundo a perícia.
Entregue de volta à empresa proprietária, a GP Guarda Patrimonial -que não quis comentar o caso-, o Rossi foi novamente subtraído em março de 2010. Devido aos bancos de dados incompletos, não é possível saber em que circunstâncias aconteceu o segundo desvio.
RETORNO
Sabe-se, porém, que a arma só reapareceu um ano mais tarde, no assalto a um restaurante no Jardim Arize, na zona leste de São Paulo.
"Quando ele entrou, eu percebi pelos lábios dele que ele tinha falado 'assalto'. Meu irmão achou que era brincadeira, até que ele levantou a camisa e mostrou a arma", conta a dona do restaurante.
Foi ela quem, disfarçadamente, chamou a polícia. O ladrão foi preso em flagrante.
Dessa vez, por ter sido apreendido em um ato criminoso, o Rossi não foi devolvido ao dono. Foi destruído pelo Exército em abril de 2012.
"Alguns mitos foram quebrados [com a pesquisa]: a arma do crime não é o fuzil, não é a metralhadora. É o revólver nacional calibre 38. Não veio do Paraguai, não cruzou a fronteira. Ele foi comercializado no Estado de São Paulo e continuou cometendo crimes ali por até 30 anos", diz Ivan Marques, diretor-executivo do instituto Sou da Paz.

Projeto quer flexibilizar regras para possuir arma

Texto em análise na Câmara prevê alterar estatuto aprovado em 2003
Diminuir a idade mínima para compra e transferir o registro para a Polícia Civil são algumas das propostas
DE SÃO PAULOA relação entre o mercado legal de armas e o abastecimento dos criminosos, apontada pela pesquisa do Ministério Público e do instituto Sou da Paz, é um dos principais argumentos dos defensores do desarmamento contra um projeto de lei que visa facilitar a aquisição de armas pela população.
Em análise em uma comissão especial na Câmara dos Deputados, antes de seguir para votação, o PL 3.722/2012 propõe alterar o Estatuto do Desarmamento, de 2003, e estender à Polícia Civil a atribuição de registrar as armas --hoje, da Polícia Federal.
A autoria da proposta é do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC).
O projeto prevê também reduzir a idade mínima para aquisição de armas, de 25 para 21 anos, e liberar a publicidade, hoje restrita a publicações especializadas.
"Embora queiram dizer que o projeto vai permitir que qualquer um compre arma, isso não é verdade. Serão mantidos os critérios objetivos tanto para a posse quanto para o porte --laudo psicológico e comprovação de que sabe usar aquela arma", afirma Bene Barbosa, do Movimento Viva Brasil, favorável a mudanças na legislação.
"A diferença é que acabará a discricionariedade, que é o grande problema. Hoje, o delegado da Polícia Federal tem o poder da caneta de dizer não simplesmente por dizer não. É o que acontece por pressão do Ministério da Justiça. O projeto acaba com esse critério subjetivo", diz.
Esse é justamente o ponto criticado pelo coronel reformado da Polícia Militar e ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho, que defende a manutenção da lei em vigor.
"O projeto de lei praticamente obriga o delegado a dar [o porte da arma]. Ele não terá mais o poder discricionário, desde que o sujeito atenda os requisitos", afirma.
"Eu sou psicólogo e sei que o exame psicotécnico é só para detectar malucos. Já o de habilidade para utilizar a arma é dar um tiro numa parede --ele não habilita ninguém a usá-la numa emergência ou numa situação de estresse."
Para o procurador-geral de Justiça do Estado, Marcio Elias Rosa, "qualquer inovação que facilite o acesso à arma de fogo não é bem-vinda".
"Não é distribuindo armamento para o cidadão que se reprime a criminalidade", diz, à luz da pesquisa que rastreou as armas usadas em crimes na capital.
IDADE E ORIGEM
O estudo mostrou ainda que 64% das armas rastreadas foram fabricadas antes da lei do desarmamento, sobretudo nos anos 1980 e 1990.
"A gente, até hoje, sofre com a falta de controle anterior a 2003", diz Ivan Marques, do Sou da Paz.
Entre as que tinham registro (38% das rastreadas), 57% foram desviadas de pessoas físicas e 43% de pessoas jurídicas. Dessas, o maior canal de desvios foram as empresas de segurança privada.
"O policial é preparado para usar a arma sob estresse, na hora da adrenalina. E esse tipo de preparo [para vigilantes privados] não existe", diz Silva Filho.

ARMA NÃO

'É ingênuo achar que bandido será intimidado'

DE SÃO PAULOEx-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho afirma que a ideia de que a arma serve para a defesa do cidadão é falsa.
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Folha - Por que desarmar?
José Vicente da Silva Filho - O fato é que, no Brasil, onde mais ou menos 10% da população tem armas na mão, mata-se seis vezes mais que nos EUA, onde 90% da população está armada. Arma faz mal aqui por causa da impunidade. Uma ideia ingênua que os armamentistas defendem é que, com mais armas, os bandidos ficariam mais intimidados. Mas a pesquisa do Daniel [Cerqueira, economista do Ipea] mostra que, quando aumentam as armas, aumentam os homicídios. Já os crimes contra o patrimônio ficam quase inalterados. Os bandidos estão pouco se lixando se o povo está armado.
Foi feita há alguns anos uma pesquisa com uns 300 casos de latrocínio. Dos que tentam reagir, 13,8% conseguem ser bem-sucedidos, o resto se ferra. O pior: quando há reação, tem uma média alta de vítimas, porque acaba morrendo também quem estiver junto.
Os contrários ao desarmamento dizem que os homicídios não caíram. As taxas por 100 mil habitantes hoje se parecem com as de 2003.
A partir de 1983, houve uma elevação acentuada das armas na mão da população e os homicídios explodiram. Só se interrompeu essa ascensão em 2003, com o estatuto. O aumento de homicídios no período [de 1983 a 2003] foi, em média, de 8% ao ano.
Folha de S.Paulo, 24/5/2015

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