3 de dezembro de 2016

Leonardo Padura: Se Trump escolher a hostilidade, o sofrimento será do povo cubano

Leonardo Padura

Enquanto em Cuba era celebrada a homenagem póstuma a Fidel Castro, à qual compareceram presidentes, líderes políticos e personalidades de todo o mundo para prestar um último tributo ao líder, uma chamada da CNN na Espanha advertia que o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, prometia rever o curso das atuais relações de seu país com a vizinha ilha do Caribe e possivelmente reverter o processo de aproximação iniciado em 17 de dezembro de 2014 pelos presidentes Barack Obama e Raúl Castro.
Como é sabido, as conversações iniciadas a partir daquela data levaram ao restabelecimento das relações diplomáticas entre Washington e Havana, depois de quase 55 anos de uma ruptura definida nos dias mais decisivos da Guerra Fria.
Nos meses posteriores, a conexão se intensificou com uma série de decretos presidenciais norte-americanos que propiciam o fortalecimento dessas relações recuperadas.
Mas agora as reiteradas declarações de Trump sobre a política que ele pretende seguir com Cuba, mais veementes quando a morte de Fidel acaba de ocorrer, não permitem prever uma melhora na saúde dessas relações.
Para começar, um retrocesso em relação ao estado atual das coisas seria uma repetição do mesmo erro de cálculo de político de pensar que uma postura de hostilidade norte-americana desestabilizaria o sistema cubano. Já se sabe que Cuba resistiu a tudo: desde as tensões da Guerra Fria até o ainda vigente embargo decretado pelos Estados Unidos em 1962.
Renata Borges/Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress
Renata Borges de 03 de dezembro de 2016
Anos mais tarde, ela sobreviveu à queda de seus principais arrimos econômicos e políticos, com a implosão do campo socialista na Europa e o desaparecimento da URSS, em 1991, que colocaram o país para lá da margem da penúria econômica.
A situação daqueles anos de carências supremas tornou-se ainda mais dura e difícil de superar com o recrudescimento do velho instrumento do embargo, graças às leis Torricelli, de 1992, e Helms-Burton, de 1996, que conferiram caráter extraterritorial às sanções econômicas que o país já sofria. Mas o sistema cubano assimilou esses golpes, e a maior cota de sacrifício e sofrimento (que chegou a incluir a fome) foi vivida pela população cubana, as pessoas, os cidadãos a pé.
Sem que essas condições externas tivessem mudado, perto do final da década de 1990 um período de recuperação começou para Cuba, e a vida se normalizou –uma normalidade tensa, é verdade, na qual continuam a existir carências–sem que mudassem essencialmente a estrutura política do país ou sua liderança, nem muito menos a política dos Estados Unidos em relação à ilha, que tornou-se inclusive mais agressiva sob os mandatos presidenciais de Bush Jr.
Quando em 2008 Fidel se viu obrigado a afastar-se definitivamente do poder por razões de saúde, Raúl Castro empreendeu mudanças importantes que afetaram a estrutura social cubana. É possível que fora da ilha não se tenha a medida exata do que significaram essas transformações, mas entre elas mencionarei uma que modificou, e muito, a vida dos cidadãos cubanos: a possibilidade de viajar livremente, que antes não existia.
Mas justamente quando há a maior distensão entre Cuba e Estados Unidos, Trump lança uma exigência: a ilha deve mudar seu sistema político ou ele vai rever a posição norte-americana em relação a ela. E o diz como se fosse um ultimato.
Como Trump é obcecado com a questão dos imigrantes, talvez as decisões em relação à ilha que venha a implementar afetem, por exemplo, as condições de que desfrutam os migrantes cubanos.
Talvez até procure revogar a Lei de Ajuste Cubano e a política de pés secos/pés molhados, que garante aos cidadãos da ilha que chegam aos Estados Unidos a residência quase imediata nesse país, um privilégio que vem facilitando a entrada de cubanos na América do Norte, permitindo sua inserção e, em grande medida, até mesmo o sucesso da comunidade cubano-americana.
A possibilidade de um levantamento total ou parcial do embargo também entraria em um período de imobilidade, não obstante o fato de, na mais recente votação nas Nações Unidas sobre o pedido cubano de revogação do embargo, a delegação de Washington ter se abstido de apoiar sua própria política, pela primeira vez em várias décadas.
Com uma decisão fundamentalista cada vez mais previsível, Trump não faria mais do que dar continuidade a uma política que o presidente Obama tentou desmontar por considerá-la historicamente fracassada. E Obama advertiu: se existe um caminho para fazer com que o sistema cubano mude, não é o mesmo que não levou a lugar nenhum. Ou que até contribuiu para a manutenção da estrutura política cubana, mesmo sob as condições econômicas mais difíceis.
Chama a atenção, no mínimo, que, enquanto Trump lança suas exigências, o presidente do México, Enrique Peña Nieto, tenha comparecido a Cuba, juntamente com dezenas de líderes de todos os cantos do mundo, em um gesto de proximidade com Havana. Essa convocatória universal maciça, somada à ausência de uma delegação oficial norte-americana, são sinais de reações políticas que podem ser lidas com facilidade e vistas como indícios do que pode acontecer no futuro.
As relações entre os dois países voltarão à situação anterior? É possível que sim. Com Trump, ao que parece, tudo pode acontecer. Só que Cuba já viveu essa experiência, sua população já a sofreu, e seu sistema não mudou. O ultimato de Trump dificilmente terá o efeito procurado, enquanto uma continuidade da política iniciada por Obama poderia realizar alguma coisa. O mais triste é que um retorno à hostilidade seria sofrido sobretudo pelo povo cubano, que seria o grande perdedor devido aos efeitos de uma cegueira histórica continuada. 

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