CLAUDIA fez plantão na central telefônica do 180, que atende denúncias de agressão
Queixas de agressão psicológica, surras e episódios com risco de morte são comuns no 180. CLAUDIA conheceu o cotidiano do serviço e traçou um retrato das tragédias dentro de casa
"Senhora, seu marido está em casa? Ele a ameaça com o quê?" Na ligação ruim, a atendente mal ouvia a resposta da denunciante, de Goiânia. "Uma arma? Uma faca?", insistiu. Não, o agressor não estava perto nem tinha uma faca - o instrumento mais usado nos assassinatos em família -, mas possuía um revólver, que havia apontado para a cabeça da mulher na véspera.
Era segunda-feira, dia de maior movimento no Ligue 180, a central do governo federal para onde mulheres de todos os cantos do Brasil telefonam quando se veem acuadas pelo marido, namorado ou ex. Por que segunda? No fim de semana, os violentos promovem um verdadeiro inferno em casa. Alguns bebem, o que potencializa o temperamento irascível, e atacam a esposa. Nesse call center, que dá orientação para o combate à violência doméstica, no curto período das 9 horas às 9h25, o álcool foi citado em chamadas de Feira de Santana (BA), Jandira (SP), Santo Antônio (RN), Belém e Brasília. O resultado do plantão de 24 horas foi de 2 156 ligações, com dramas, relatos de espancamento e de ameaças verbais.
O número cresce quando a mídia noticia mais um assassinato - e isso lembra as mulheres em perigo de que elas devem reagir, embora denunciar não garanta a vida. Dia 7 de agosto passado, no balanço dos seis anos da Lei Maria da Penha, que protege vítimas e é considerada avançada, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, reconheceu que esse instrumento ainda não foi capaz de conter a fúria: "É necessário frear o aumento de casos e a crueldade com que eles acontecem, responsabilizar o agressor, criar condições para que a Segurança Pública atue nos flagrantes e a Justiça tenha rapidez nos julgamentos".
O Brasil é o sétimo entre os países mais covardes. De 2000 a 2010, foram mortas 43 mil brasileiras - 68,8% no lar -, o que equivale ao triplo do registrado nos anos 1980 e 1990, segundo o Mapa da Violência 2012 - Homicídio de Mulheres no Brasil, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e Instituto Sangari. A selvageria crescente cutucou o Congresso. Em fevereiro, horas após o assassinato a facadas da procuradora federal Ana Alice de Melo, oito senadoras pediram urgência na instalação de uma Comissão Parlamen-tar Mista de Inquérito (CPMI), suspeitando que a omissão das autoridades facilite a ação dos criminosos. "Temos indícios de que, mais uma vez, houve falhas nas medidas de proteção à vítima", afirmaram as parlamentares em nota. De fato, Ana Alice havia registrado um boletim de ocorrência e solicitado à Justiça providências para manter o ex-marido à distância. Mas ele invadiu a casa, em um condomínio de luxo nas cercanias de Belo Horizonte, e a liquidou. A babá, apavorada, se trancou com os dois filhos do casal no banheiro. Mais tarde, o agressor se matou.
Nos chamados recebidos pelas 196 atendentes na central - elas se revezam em turnos de seis horas -, ouvem-se relatos recheados com dois, três, quatro boletins de ocorrência, os BOs. Uma gaúcha de 46 anos (o nome das usuárias é omitido para poupá-las), da região de Cruz Alta (RS), disse sobre o homem com quem vive: "Ele é um animal selvagem, me pega à força, quebra tudo. Vai me matar para ficar com a casa, que comprei sozinha. Preso em flagrante, ele foi solto e voltou. O último BO é de julho. Já procurei o quartel da PM e a assistência social. Fui à comarca de Bagé, pedi ajuda em Porto Alegre. Uma juíza mandou o agressor conversar comigo. Isso é o fim do mundo! Não consigo me livrar; alguém precisa tirar esse monstro daqui". A atendente engoliu em seco, um tanto impotente. Ela explicou que um promotor do Ministério Público pode solicitar medidas protetivas ao juiz, que, nesse caso, suspenderia o porte de arma do algoz, determinaria o afastamento de casa e a distância dos lugares que ela frequenta. "Se ele não cumprir, terá a prisão preventiva decretada", alertou a funcionária. A gaúcha confessou se sentir desamparada para prosseguir. A atendente, então, recomendou procurar um defensor público, que agiria como advogado. Mais um dilema: o Rio Grande do Sul conta com apenas sete Defensorias Públicas especializadas, segundo a central. A gaúcha está a 300 quilômetros da mais próxima. No país, as defensorias não passam de 60. Paraná, Santa Catarina e Goiás não têm nenhuma.
Na mira da CPMI
A deputada Jô Moraes (PCdoB-MG), presidenta da CPMI, que deve ser concluída em março, visitou dez estados e viu muitos problemas: "Ainda não se estabeleceu um protocolo para acompanhar as medidas tomadas entre polícia, Ministério Público e Justiça. Se um juiz determina o afastamento do agressor, quem fiscalizará o cumprimento disso?" Jô citou a morosidade da Justiça. "Em Minas Gerais, vimos duas Varas de Violência Doméstica, cada uma com um só juiz, nove servidores e 22 mil processos para resolver." A demora, ressaltou ela, agrava a tensão nas tentativas de homicídio. "Uma mulher de Belo Horizonte, esfaqueada em 2010, teve a audiência marcada só para 2013. Tempo demais. Em agosto, o ex jogou o carro em cima dela", disse Jô. Outro entrave são os juízes religiosos e crentes no casamento indissolúvel. Eles não dão ouvidos à mulher ou tratam o crime como conflito de família, propondo a conciliação no lugar de abrirem processo. O relatório da CPMI, responsabilidade da senadora Ana Rita (PT-ES), vai apontar retrocesso ou ineficácia em todo o país, situação que os inquéritos policiais mal-elaborados refletem. Enviados ao Judiciário com falta de informações, acabam arquivados. Na capital paulista, de 189 inquéritos, somente 39 viraram processo. Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, lembrou que, "no estado mais rico da nação, algumas delegacias estão sendo fechadas ou desviando o foco. Dez passaram a atender também velhos, crianças e adolescentes". E faltam delegacias. "No Brasil, há apenas 380 especializadas, muitas sem pessoal treinado e viaturas."
Apesar disso, as operadoras do Ligue 180 ensinam que nada se resolve com água benta e panos quentes e que é preciso denunciar. Jucilene Ramos ouviu uma chamada de Porto Velho pontuada por lágrimas. Casada há 15 anos, a mulher se dizia deprimida por escutar ofensas na frente dos cinco filhos - 66,4% das agressões anotadas são presenciadas pelas crianças. Jucilene explicou: "Tomar seu celular é violência patrimonial. Xingar configura violência moral. Transar à força, crime sexual". Tudo previsto na Lei Maria da Penha. "A queixa impalpável (sem prova física) é recebida com desconfiança na polícia", disse à reportagem Clarissa Carvalho, coordenadora do Ligue 180. "Mas ela nunca vem sozinha. Se tem ataque físico, entra como agravante." A mulher de Porto Velho ficou na linha por 35 minutos. Acabou relatando surras. "As histórias ainda me abalam", confessou Jucilene. "Não esqueço uma cidadã que contou que o filho, de 16 anos, a agredia sem parar. Ela não queria levá-lo à polícia, só desejava desabafar. Tenho uma filha nessa idade e imaginei como seria horrível apanhar assim." Para amenizar o peso do trabalho, as atendentes passam por sessões com psicólogas. Contam que permanecem na função porque se orgulham do que fazem: já orientaram 2,6 milhões de brasileiras e alimentam um banco de dados em que o Distrito Federal figura no topo do ranking de chamadas, seguido por Pará e Bahia. No semestre passado, o 180 descobriu 211 mulheres vivendo em cárcere privado e 17 casos de tráfico de pessoas - e avisou a polícia. Registrou, aliás, uma vitória contra uma organização que levava brasileiras à prostituição em Ibiza, na Espanha. Sete traficantes foram presos. A central mantém o serviço telefônico lá, em Portugal e na Itália.
"Adultério não é crime"
Naquela segunda-feira, uma paulista de Ribeirão Preto perguntou se era possível processar o marido, que arranjara uma amante. E ouviu: "Não, adultério não é crime". Ela insistiu: "Mas ele está vivendo com a vizinha. Cabe uma ação por danos morais? Posso pedir à Justiça que ela deixe de passar na minha calçada?" Recebeu como resposta que todos têm direito de ir e vir, e dano moral, nesse caso, não se sustentaria, já que a separação estava consumada. O Ligue 180 recebe também trotes e piadas machistas. E muitos pedidos de intervenção policial no calor do crime. "Uma mulher correu para o banheiro e, do celular, disse que seria morta. Implorou para que eu mandasse uma viatura", lembrou a experiente atendente Irene da Silva, na central desde o início do serviço, em 2005. "Eu ouvia a voz do agressor e a aconselhei a ligar correndo para o 190, da PM. Não podia ajudar mais." A sensação de impotência aumenta nessas horas. Mas um projeto está em curso para alargar esse limite conectando o Ligue 180 à polícia. "Além disso, a denúncia funcionaria quase como um BO. Nós a enviaríamos para a delegacia com prazo para a resposta", contou Clarissa. Para tanto, a central, que custa 7 milhões de reais por ano à Secretaria de Políticas para as Mulheres, terá de ampliar o orçamento e firmar acordos com as secretarias estaduais de Segurança Pública.
Um endereço discreto
Os vizinhos não sabem o que funciona no prédio da central, no Núcleo Bandeirante, a 14 quilômetros do Plano Piloto de Brasília. As atendentes não costumam revelar aos conhecidos a atividade que exer-cem. "Para evitar represálias", justificou Jucinélia Guimarães, chefe de operações do 180. "O agressor liga querendo saber o endereço. Acha que, se o juiz decretou sua prisão preventiva, a culpa é nossa." Jucinélia entrou ali como atendente e ascendeu. Retomou os estudos, vai se formar em direito para ser delegada. "Não vou permitir que um policial deixe de cumprir seu dever de investigar porque julga que a mulher mereceu a surra ou teve culpa no estupro, o que ocorre com frequência." Ela citou uma vítima que não denunciava o algoz com medo de ser mal interpretada na delegacia. "O marido, um caminhoneiro, levava amigos para fazer sexo com a esposa enquanto ele observava. Eu disse a ela que muitos delegados hoje dão importância ao relato e dispensam o exame de corpo de delito, pois, àquela altura, não haveria mais marcas para comprovar a violência."
Já o que chama a atenção de Irene é a diversidade de perfis das usuárias do 180. "Há mulheres com pouca escolaridade e outras bem graduadas. Atendi uma advogada que sofria violência patrimonial, conhecia a lei, as punições, mas queria ajuda emocional, pois dependia afetivamente do homem. Teve de me ouvir para criar coragem e reagir." Foi com esse espírito que Irene e suas colegas reforçaram, no dia 25 de novembro - data mundialmente dedicada ao enfrentamento à violência doméstica -, a campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha: a Lei é Mais Forte, lançada pelo governo. Outra tentativa para estancar a sangria e impedir mais mortes dentro de casa.
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