1 de setembro de 2014

“Ciência aberta coloca foco nas relações entre ciência e poder”

segunda-feira, 1 de setembro de 2014
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A pesquisadora Sarita Albagli, do IBICT, analisa a questão que vem sendo debatida pela comunidade científica
O movimento pela ciência aberta (open science) é um modelo de prática científica que prioriza a disponibilização de suas informações e produções de forma aberta nas redes para os diversos públicos – de especialistas a leigos, de forma contrária à pesquisa fechada dos laboratórios. Essa abertura pode envolver desde a publicação, com formatos e licenças abertos, de dados brutos e anotações de pesquisa, até a disponibilização de softwares, designs de instrumentos e a já mais difundida publicação de artigos científicos nas revistas de acesso aberto. O tema vem sendo amplamente debatido pela comunidade científica.
Especialistas da área da informação afirmam que a favor dessa prática estão a garantia de reproducibilidade e facilitação do aperfeiçoamento, a possibilidade de uma revisão por pares mais ampla e profunda, a colaboração online para além das fronteiras geográficas ou institucionais e até mesmo o engajamento protagonista da sociedade na produção científica.
Esse parece ser um grande desafio para a ciência moderna. Como seria essa nova forma de fazer ciência? Como ficam as publicações dos resultados das pesquisas e de outros trabalhos científicos?
A pesquisadora Sarita Albagli, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), coordenadora do Laboratório Interdisciplinar sobre Informação e Conhecimento (Liinc) e editora da Liinc em Revista expõe sua visão sobre o assunto. Ela participou do Seminário “Ciência Aberta, Questões Abertas” realizado entre os dias 18 e 22 de agosto, no Rio de Janeiro.
Para a pesquisadora, essa temática se investe de um caráter que é diretamente político, sendo central nas relações de poder nas sociedades contemporâneas. Segundo Sarita Albagli, isto implica superar a perspectiva de se pensar a ciência e a mudança técnica a partir da sua produtividade intrínseca ou centralmente por sua eficácia econômica, colocando foco nas relações entre ciência e poder, ou mais amplamente entre saber e poder.

Jornal da Ciência – Como podemos entender a chamada ciência aberta?
Sarita Albagli - Entender o significado do atual movimento pela ciência aberta implica reconhecer sua inserção no contexto mais amplo da existência de uma forte tensão entre a socialização do conhecimento, da informação e da cultura, de um lado, e sua privatização, de outro.Por um lado, temos, desde fins do século XX, o alargamento dos mecanismos de apropriação privada da produção intelectual e cultural, tanto pelo endurecimento dos instrumentos de proteção da propriedade intelectual, como por meio de novas formas e estratégias de captura, apropriação e valorização dessa produção coletiva. Por outro, desenvolvem-se novas práticas e espaços de interação, de produção colaborativa, expressando importantes inovações sociais nas dinâmicas produtivas, políticas e culturais, as quais se valem das novas plataformas digitais.

JC – Como ficaria o atual regime de proteção de direitos de propriedade intelectual, por exemplo?
SA - Ciência aberta é um termo guarda-chuva, que engloba diferentes tipos de práticas e abordagens, e que também permite múltiplas (e por vezes conflituosas) interpretações. No centro do discurso da propriedade intelectual está o paradigma do autor individual como criador de novo conhecimento. A essa concepção, contrapõe-se, primeiramente, a ideia de que todo novo conhecimento advém de conhecimento prévio e, sendo um produto social, seu valor não é inteiramente atribuível a nenhum autor em particular. As atuais justificativas para direitos de propriedade intelectual dirigem-se menos para os direitos de autores e inventores como criadores de conhecimento, e mais para os incentivos econômicos para a (re)produção de objetos de conhecimento, beneficiando não os indivíduos criadores, mas empresas.

JC – Quais as vantagens da ciência aberta?
SA - A ciência aberta promove o aumento dos estoques de conhecimento público, propiciando não apenas a ampliação dos índices gerais de produtividade científica e de inovação, como também das taxas de retornos sociais dos investimentos em ciência e tecnologia. Além disso, tem-se demonstrado historicamente que é no compartilhamento e na abertura, de modo coletivo e não individual, que ocorre a criatividade e a inovatividade, valendo-se das infraestruturas de conexão e interação em redes. É nesse mesmo quadro que se projetam abordagens e práticas análogas, como as de: co-criação, e-science, produção peer-to-peer, produção wiki, crowdsourcing, co-inovação, inovação aberta, entre outras.

JC – Os cientistas estão aderindo a esse movimento?
SA - A necessidade de resolução de problemas de alta complexidade e os elevados custos da pesquisa têm movido boa parte dos pesquisadores a buscar colaboração aberta, frequentemente por meios interpessoais e informais, a despeito dos limites macro e meso-institucionais. A formalização de redes de colaboração interinstitucionais enfrenta barreiras que, frequentemente, levam ao engessamento da pesquisa e do intercâmbio de conhecimentos e informações, na contracorrente da agilidade hoje propiciada pelas novas plataformas de informação e comunicação.

JC – Quais seriam as consequências e desdobramentos dessa ciência aberta?
SA - Trata-se sobretudo da “socialização do conhecimento, por meio da produção coletiva de uma intelectualidade difusa – o intelecto geral, na linguagem marxiana, no que alguns vão chamar de “polinização social”, “apieconomia” ou “sociedade pólen”, na “heterogeneidade de conhecimentos” que se retroalimentam. Algo que se desenvolve e produz não mais estoques, mas fundamentalmente fluxos. Desta perspectiva, a ciência aberta é algo que requer e promove fluidificar a circulação de informações, “lubrificando” o processo de produção de conhecimentos, o saber coletivo sendo feito de conexões entre a diferença. Por fim, cabe ainda indagar se, no debate e nos embates em torno da ciência aberta, estão também em questão distintas perspectivas geopolíticas, geoeconômicas e geoculturais; e, ainda, distintas posições e interesses de diferentes segmentos sociais. Coloca-se aqui a indagação: que ciência aberta? Para que tipo de desenvolvimento? Para quem?

JC – Há respostas para essas perguntas?
SA - A meu ver, os pobres são certamente os mais afetados pelos sistemas de apropriação privada do conhecimento (e pelas patentes, em particular), principalmente em áreas sensíveis, como a de medicamentos, agricultura e alimentação, na medida em que tais sistemas elevam artificialmente os preços de produtos, o que certamente afeta os mais carentes; não difundem amplamente os benefícios dos avanços do conhecimento, sobretudo para os pobres; enviesam os focos da pesquisa para áreas de interesse dos ricos, e não dos pobres; e colocam barreiras à pesquisa e, logo, à inovação, particularmente em áreas de interesse dos pobres. A ciência aberta coloca, neste aspecto, em pauta, uma nova agenda de direitos, sejam eles humanos e sociais, sejam também os que visam garantir a sustentabilidade e a sobrevivência da vida de modo amplo. A questão da propriedade intelectual deixa então de pertencer a uma arena meramente técnica, de interesse limitado a especialistas, para mobilizar um amplo espectro de atores sociais, que veem suas vidas diretamente afetadas por esse aparato legal.

JC – Qual o futuro da ciência aberta?
SA - No desenvolvimento da ciência aberta atuam fatores tanto de ordem técnica (como a disponibilidade de plataformas computacionais e infraestrutura tecnológica para compartilhamento de dados), quanto fatores institucionais, normativos, políticos e culturais. Os esforços de ciência aberta envolvem instâncias de ação e decisão diferenciadas, que vão desde o pesquisador individual até o nível macro das políticas públicas e das regulações internacionais, passando pelo nível meso das instituições de pesquisa e agências de fomento.Para além dos aspectos tecnológicos que caracterizam essa forma de fazer ciência, são as questões de ordem institucional (formais e informais) que mais interferem no caráter aberto ou proprietário dessas práticas. Mais importantes são os novos usos que implicam em transformações nos métodos e estruturas lógicas da pesquisa e, logo, em seus resultados, em um processo de aprendizado e inovações contínuos. Boa parte dessas questões diz respeito aos mecanismos de governança – mais especificamente de governança informacional – entre os vários participantes, o que remete às formas de gestão e resolução de conflitos e de poder.

(Edna Ferreira – Jornal da Ciência)

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