5 de maio de 2013

Maioridade Penal: Redução é ledo engano


05 Mai 2013, Correio Brasiliense
Dioclécio Campos Júnior

Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium


Nada pior para a população do que projetar mudanças puramente emocionais e protelatórias. Exemplo é a tentativa de redução da maioridade penal. Só faz adiar as medidas capazes de reverter os altos índices de violência no país. Desvia o foco de discussões causais que a sociedade evita desencadear a qualquer preço.

Resolver o problema da alta criminalidade nacional pela simples prisão de adolescentes a partir dos 16 anos de idade é autoengano criado para iludir a mente nacional. Além de desrespeitar a Constituição, a proposta traz à tona o imediatismo inconsequente da cultura brasileira.

O conceito de delito não pode se limitar à mera caracterização do que é crime, atendo-se a identificar, deter, julgar ou condenar o autor à prisão, tampouco restringir os antecedentes criminais do infrator à lista de transgressões anteriores. Há que punir os responsáveis pelas más condições sociais, culturais e econômicas geradoras do comportamento criminoso.

O grande filósofo francês da atualidade, André Compte Sponville, refere-se ao tema com admirável lógica. Deixa claro que o delinquente é culpável pelo crime cometido, não por ser criminoso. Importante é saber quem produz um criminoso. Tal reflexão é repleta de conteúdo. Aplica-se ao contexto criminal que envolve, cada vez mais, o ser humano na fase da adolescência. De fato, o perfil de infrator não surge repentinamente. Modela-se nos primeiros tempos de sua existência. Imprime-se na personalidade de um ser em formação, sempre que exposto a carências múltiplas sofridas no ambiente em que é concebido, nasce e cresce. Em turvas águas do estresse crônico nas quais se afoga sua essência humana desde a vida intrauterina, a escassez de estimulação afetiva e a violência de que é vítima a partir do nascimento são incompatíveis com os mecanismos genéticos e epigenéticos que estruturam o cérebro, fundamento da personalidade humana.

O sociólogo Gilberto Freire descreveu as etapas de lapidação do caráter que qualifica os padrões de uma sociedade. Segundo ele, todo filho da espécie Homo sapiens é humano. À medida que cresce em núcleo familiar adequado, converte-se em indivíduo. Ainda criança, inicia estreita interação com outros seres presentes no mesmo ambiente. Se a atmosfera do microuniverso em que transcorre essa fase ontologicamente estruturante ensejar relações acolhedoras e respeitosas, o indivíduo evolui para pessoa. Devidamente reconhecido pelos méritos pessoais, insere-se no contexto da maturidade graças à incorporação de valores éticos, morais e comportamentais. Torna-se cidadão.

Essa evolução prima pelo acesso da criança e do adolescente aos componentes requeridos para crescimento e desenvolvimento plenos a que têm direito. Recursos nutricionais saudáveis, fonte de afeto, estimulação lúdica, educação de qualidade, cenário familiar carinhoso e equilibrado, além de condutas parentais exemplares, são o alicerce para a construção dos seres humanos esquivos à agressividade, avessos à violência. Quando tais requisitos não lhes forem assegurados pelo núcleo social em que vivem, a metamorfose perderá rumo. Incursionará pelos desvios de rota que levam a desfechos desfavoráveis à vida em sociedade.

Pesquisas clássicas de Bowlby demonstram que crianças vítimas de privação materna na infância — rotina no mundo atual — têm maior probabilidade de comportamentos futuros marcados pela incapacidade de lidar com o afeto, tanto para dar quanto para receber. Tendem a práticas que culminam em infrações, delinquências e crimes.

Menores em conflito com a lei não nasceram infratores. Foi a sociedade que os condenou a viver sem opção de dignidade, negou-lhes direitos fundamentais, retirou-lhes a chance de escolhas diferentes. O economista James Heckman mostrou que episódios de detenção de jovens delituosos são bem mais frequentes entre aqueles cuja infância careceu dos cuidados qualificados em saúde e educação.

A luta para reduzir a maioridade penal atesta descompromisso dos adultos como provedores das condições de vida necessárias à metamorfose da infância e da adolescência. Afirmar que o adolescente é penalmente maduro só faz sentido caso a alegada maturidade vá além do campo penal. Se já amadureceu para ser preso como adulto, não há porque lhe negar o direito de ser votado, exercer mandato nos poderes Executivo e Legislativo, desempenhar funções no Judiciário. Do contrário, seria declará-lo maduro para a responsabilidade penal e imaturo para tudo o mais. Uma decisão injusta e incoerente. Um ledo engano.

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