15 de setembro de 2013

MARIA ALICE SETUBAL O direito ao letramento

Folha de S.Paulo, 15/9/2013

Mais que condição "sine qua non" para que as crianças avancem na escolarização, o letramento potencializa o exercício da cidadania
"Fui passando, passando, passando e cheguei na quinta série sem saber ler nem escrever. Daí minha mãe me colocou na primeira série de novo, quando eu tinha 11 anos." Essa é a trajetória da Tia Edna, que, mesmo sem abandonar os estudos ou ser reprovada, concluiu o ensino médio apenas aos 22 anos. Hoje, com 39, ela se dedica a dar aulas de reforço para crianças na periferia de São Paulo, a maioria não alfabetizada.
O problema vivido por Tia Edna persiste. A sociedade brasileira ainda não solucionou a desigualdade que afeta, particularmente, territórios vulneráveis como as periferias urbanas e as zonas rurais. É preciso reconhecer as desigualdades que marcam o acesso à língua escrita e às práticas de letramento no Brasil.
Apenas 1 em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática. Da população de 15 a 64 anos, 27% é analfabeta funcional --a proporção de analfabetos funcionais na área rural é de 44% e de 24% nas áreas urbanas. Um em cada 4 brasileiros que cursaram até o ensino fundamental 2 tem nível rudimentar de alfabetismo e somente 35% dos brasileiros com ensino médio completo podem ser considerados plenamente alfabetizados (Indicador de Alfabetismo Funcional 2011/2012).
O conceito de letramento é uma evolução do termo alfabetização. Busca responder à complexidade das demandas de conhecimento atuais, incluindo as novas mídias e linguagens. Letramento designa as diferentes práticas de leitura e escrita nos diversos domínios da vida social como o trabalho, a família e a escola.
Mesmo considerando a história de superação de tantas Tias Edna, os alunos das escolas públicas não deveriam precisar de aulas de reforço particulares. A escola é a instituição que trabalha intencionalmente o ensino da leitura e escrita. É, portanto, sua responsabilidade garantir o letramento da população, para que o indivíduo usufrua das oportunidades da sociedade contemporânea. Para isso, é necessário fortalecer o papel do professor, peça-chave para assegurar o letramento do aluno, investindo em sua formação continuada.
Mais que condição "sine qua non" para que as crianças dominem os demais aprendizados e competências e avancem na escolarização, o letramento é um direito humano. Condição que potencializa o exercício da cidadania, contribui para a formação individual e a autonomia.
A sociedade globalizada demanda cidadãos que pensem globalmente e atuem localmente. Cidadãos capazes de fazer uma leitura de mundo e contribuir para a sustentabilidade do planeta.
A escola tem que ser eficaz em seu papel fundamental de garantir o direito ao letramento, estimulando o acesso às novas práticas originadas pela cultura digital. Só assim conseguiremos avançar na construção da nação que desejamos neste século 21 --uma sociedade que, além de economicamente desenvolvida, seja socialmente justa e sustentável.
Em tempo: Tia Edna é o nome fictício de uma entrevistada na pesquisa Educação em Territórios de Alta Vulnerabilidade Social na Metrópole, coordenada pelo Cenpec, em 2012.

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