ANTONIO ALMEIDA E ORIOWALDO QUEDA
SIM
É preciso abolir essa prática de tortura
No Estado de São Paulo, o trote é proibido pela lei estadual nº 10.454/99. Porém, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) aberta na Assembleia Legislativa do Estado sobre Violações de Direitos Humanos nas faculdades paulistas, brilhantemente presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT-SP), revelou mortes, estupros, assédio e aliciamento sexual.
Além disso, identificou que houve introdução de substâncias no ânus de calouros, privação de sono, ingestão forçada de alimentos repulsivos, fezes, álcool e outras drogas lícitas e ilícitas.
Há registros também de afogamentos em piscinas e em vasos sanitários; de tapas, de socos, de chutes, de espancamentos, de cárcere privado, de exercícios físicos extenuantes, de racismo, de homofobia, misoginia e de muitas outras humilhações, constrangimentos, difamações, ameaças e agressões.
O levantamento foi inédito em extensão. Mas, como havia muito medo entre os estudantes, essas estarrecedoras revelações feitas pela CPI são apenas a superfície das violências. Diversas faculdades merecem CPIs específicas.
O trote tem duas fases. No primeiro ano, ele serve como teste para verificar se o aluno obedece e permanece em silêncio. Quanto maior o constrangimento, maior a violência, mais definitiva será essa verificação. Se mesmo contrariado e violentado o aluno continuar obedecendo e em silêncio, ele passará para a segunda fase quando deverá oprimir e torturar outras pessoas.
Desse modo, ele adquire a confiança dos mais velhos que, então, vão ajudá-lo a encontrar trabalho na universidade, no Estado, nas empresas privadas, nas ONGs etc. Em outras palavras, as habilidades de obedecer e silenciar são extremamente úteis à corrupção.
As organizações deveriam ficar atentas a isso, pois essas pessoas, formadas pela tortura dos grupos trotistas, são um risco para elas.
É uma vergonha que cursinhos, colégios, universidades e bancos utilizem imagens do trote como sinônimos de comemoração e conquista, seduzindo, iludindo e expondo os jovens à tortura. É também vergonhoso que notícias o tratem como brincadeira inocente e natural, distorcendo a realidade.
A classe dirigente e opressora, formada por meio da violência e tortura, nunca teve condições de conduzir os destinos do Brasil, levando-nos ao caos da cisão social extrema. Para eliminar os abismos que dividem a sociedade brasileira, é preciso respeitar a diversidade e dignidade das pessoas, pesquisa, informação, debate, cultura, sensibilidade, generosidade, inteligência, arte, em uma palavra: igualdade.
O trote não é rito de passagem. Dentro da universidade, ele é a reposição de abissais divisões que precisamos superar. É uma síntese violenta de preconceitos de raça, classe, gênero, orientação sexual, etnia, religião etc. Ódios profundos que devemos remediar e não estimular.
O trote universitário é uma reprodução de hierarquias rígidas, burocráticas e militares. Isso é, uma forma de doutrinação violenta em um espaço social que deveria ser consagrado à liberdade de expressão, à crítica e ao debate das questões de nosso tempo.
O trote deforma convicções e o caráter dos estudantes. As universidades deveriam reconhecê-lo como um grande problema do ensino superior. Romper com ele é possibilitar novas formas de socialização, muito mais cooperativas, justas, responsáveis e democráticas.
O trote é obstáculo à democratização da universidade e do país. Chega de omissão e conivência. Trote é tortura e deve ser abolido.
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