editoriais@uol.com.br, 12/6/2015, Folha de S.Paulo
Decisão do STF reitera princípio da liberdade de expressão ao permitir biografias sem a necessidade de autorização prévia
Com bons motivos, classificou-se de "histórica" a sessão de quarta-feira (10) no Supremo Tribunal Federal. Estabeleceu-se que não é constitucional a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias no país.
Tomada por unanimidade, a decisão representa uma vitória da liberdade de expressão --e por isso mesmo talvez caiba acrescentar, ao aplauso que suscita, a nota mais humilde da consternação.
Pois não deixa de ser vexaminoso que, 26 anos depois de promulgada a Constituição, ainda se discuta juridicamente a validade de um de seus princípios básicos.
O bom senso e a obviedade nunca impediram ações judiciais sem cabimento. No caso das biografias, não foram poucas as personalidades (e seus familiares ou herdeiros) dispostas a invocar algum mecanismo legal para exercer censura.
Fundamentavam-se em dois dispositivos do Código Civil, cujo sentido é o de proteger a vida privada dos cidadãos e os direitos que detêm sobre a própria imagem.
O artigo 20 considera que "a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas" se atingirem sua honra ou respeitabilidade. A não ser que exista autorização da própria pessoa ou de seus descendentes.
Afirma-se, no artigo seguinte, que é inviolável a vida privada de uma pessoa, podendo o juiz adotar "as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".
Com base nisso, a boa imagem do cangaceiro Lampião, defendida por seus descendentes, determinou três anos de censura sobre a narração de sua movimentada vida. O motivo é que o texto especulava sobre a homossexualidade do bandoleiro sertanejo.
Liberdade de expressão ou direito à privacidade? Os ministros do STF procuraram equilibrar os dois princípios. Não é possível, numa democracia, censurar previamente uma obra de pensamento. Não se quis, entretanto, vedar automaticamente qualquer tentativa de acesso à Justiça baseada nos dois artigos do Código Civil.
Uma top model, lembrou o ministro Dias Toffoli, não pode liberar o uso comercial de sua imagem sem pagamento. Não apenas indenizações, mas outras formas de reparação podem ser solicitadas --e alguns ministros chegaram ao ponto de não descartar que se possa suspender a circulação de um livro.
Casos polêmicos, portanto, haverão de voltar à baila no futuro. O que não se admite --e nunca deveria ter sido admitido-- é a censura prévia, a obrigatoriedade da autorização. A rigor, o STF reafirma o que nem mesmo precisaria ser posto em debate; mas é assim, aos poucos, que o consenso se constrói.
HÉLIO SCHWARTSMAN
Delírios liberticidas
SÃO PAULO - A liberdade de expressão avançou um bocadinho esta semana com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de pôr fim à necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias.
Os dispositivos legais que exigiam o aval do biografado ou de seus familiares nunca fizeram sentido jurídico ou lógico. Para prová-lo, basta considerar que, pelo artigo 20 do Código Civil, até a biografia de um personagem como Hitler precisaria de sua permissão. Mas qual pode ser o valor de um retrato de Hitler que contasse com sua aprovação?
Foi ótimo, portanto, que os ministros do STF tenham, por unanimidade, dado cabo desse delírio legislativo de nossos valorosos parlamentares. Restam, porém, muitos outros e seria importante que segmentos da sociedade civil com legitimidade para propor ações de inconstitucionalidade aproveitassem a composição liberal do Supremo para contestar outras normas imprestáveis.
Penso especificamente nas leis de desacato, de apologia do crime, de difamação de religiões e alguns aspectos dos delitos contra a honra. Não, não estou propondo nada de revolucionário que abalará os alicerces do Estado e da família. Em seguidos relatórios publicados desde os anos 90, a sempre bem comportada Organização dos Estados Americanos (OEA) pede que seus membros revoguem alguns desses dispositivos, por considerá-los incompatíveis com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Basicamente, essas leis fazem muito pouco para promover a paz pública, mas são eficazes para calar teses impopulares, limitando assim o debate franco de ideias que está no cerne do processo democrático.
Seria interessante ainda evitar que se convertam em diplomas legais outros projetos liberticidas, como a chamada lei da homofobia e, agora, a da cristofobia. Quem não consegue tolerar piadas ou críticas deveria procurar um terapeuta, não um deputado.
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