20 de junho de 2015

Uso de drogas é questão de saúde, não de polícia, Pierpaolo Cruz Bottini


Professor de direito penal da usp é autor de parecer a favor da descriminalização em processo que será votado no STF
PEDRO IVO TOMÉDE SÃO PAULO, Folha de S.Paulo, 20/6/2015

O uso de drogas deve ser descriminalizado no Brasil porque a liberdade é um direito previsto pela Constituição, e, por isso, a lei não pode punir uma autolesão. O consumo deve ser tratado como questão de política de saúde, não como crime.
Essa é a opinião do advogado Pierpaolo Cruz Bottini, professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP e ex-secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça durante o governo Lula.
Na segunda (22), ele irá lançar o livro "Porte de Drogas para Uso Próprio e o Supremo Tribunal Federal" pela Viva Rio Editora e a CBDD (Comissão Brasileira de Drogas e Democracia), reunindo argumentos pró-descriminalização do usuário de drogas.
A obra se baseia num parecer de Bottini sobre a punição a um consumidor de maconha. A ação, de autoria da Defensoria Pública de SP, contesta a constitucionalidade da regra que prevê penas ao usuários de entorpecentes.
O processo corre no STF (Supremo Tribunal Federal) desde 2011. Nesta sexta (19), o caso foi liberado para votação pelo relator, Gilmar Mendes, e incluído na pauta do tribunal. Agora, deve ser votado no segundo semestre.
Veja abaixo trechos da entrevista concedida pelo advogado por telefone.
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Folha - Quais são os principais argumentos contra a criminalização do usuário de drogas?
Pierpaolo Cruz Bottini - O primeiro é de ordem constitucional. Todo o nosso sistema é baseado na liberdade do ser humano. Do ponto de vista criminal, você pode fazer o que quiser, desde que não prejudique terceiros.
Quando se fala do uso de drogas, você fala em uma autolesão, e isso não pode ser criminalizado. Você não criminaliza o suicídio. Você não criminaliza a prostituição. Você criminaliza quem ajuda e instiga o suicida ou quem explora a prostituição.
Quando a gente quer levar a sério a dignidade humana, tem que admitir que as pessoas podem levar a vida como elas quiserem. Não posso ter uma Constituição que fala em dignidade humana e permite criminalizar algo que não afeta terceiros.
O segundo é do ponto de vista de política pública. Em todos os países em que não se trata a questão como criminal, você aproxima o usuário do Estado. Tratando como questão de saúde pública, você traz essas pessoas para o sistema de saúde de uma forma não estigmatizada.
Em Portugal, hoje, depois da descriminalização, você tem três overdoses para cada milhão de habitantes. Na Inglaterra, em comparação, são 44 por milhão de habitantes. A média na Europa é 17,3 por milhão de habitantes.
Aquela ideia de que, se descriminalizar, vai liberar geral e ter aumento de usuários e de overdoses é um mito.
Os danos à saúde causados pelas drogas, com impacto nos gastos públicos, são usados como argumento por quem é contra a descriminalização. Qual a sua opinião?
O argumento soa muito estranho diante da permissão da bebida e do cigarro. Não é válido enquanto você não tratar todo tipo de droga que faz mal à saúde da mesma forma. Algumas drogas mais pesadas você pode recolher.
Você não vai poder usar na rua, num local público. Esse tipo de apreensão pode acontecer, na medida em que você tem uma série de substâncias que serão definidas pelo Ministério da Saúde.
O primeiro passo é descriminalizar o uso de drogas. Hoje, você não vai mais preso por usar, mas sofre uma sanção e isso fica registrado. O usuário é considerado uma pessoa que merece castigo, e não um tratamento.
Se a solução criminal não é a ideal, qual seria a melhor diretriz para uma política a respeito das drogas?
Um primeiro passo é a descriminalização. A partir disso, o usuário que desejar ajuda não vai ter medo de procurar. O que nós propomos é esse primeiro passo. A partir daí, você tem uma série de propostas possíveis, como centro terapêuticos. Na área médica, você tem uma série de exemplos. Mais uma vez, é uma questão de liberdade. O essencial é avançar, retirando o estigma criminal.
No parecer que baseou o livro, o senhor fala que a mudança da lei em 2006 não trouxe uma nova abordagem da polícia em relação aos usuários de drogas. Como mudar isso?
O problema é de prática policial, e isso deve ser resolvido no âmbito da própria polícia. Você precisa treinar os policiais, o que poderia ser feito desde já. Há muitos casos em que a polícia trata usuários e traficantes da mesma forma. É necessário haver um treinamento para que o usuário não seja tratado dessa forma.
Há quem argumente que o usuário deve ser criminalizado, pois sem ele não há tráfico. O que o senhor acha?
O usuário é a vítima do tráfico. Quem compra um rádio roubado é tão criminoso quanto o vendedor, porque a vítima é quem teve o rádio roubado. No tráfico, o usuário é a própria vítima, porque ele se autolesiona, e não faz sentido ele ser castigado por um ato do qual ele é a vítima. É contraditório.
Outro argumento usado por quem é contra a descriminalização é que o usuário pode se tornar perigoso, cometendo crimes para sustentar o vício.
É muito perigoso você criminalizar uma pessoa por uma questão de estatística. Você cria um precedente muito perigoso, pois está criminalizando uma pessoa pelo fato de que outras pessoas em situações similares cometem crimes, e acaba generalizando a aplicação da pena, desvinculando-a da culpa. A partir daí, pode-se criminalizar categorias sociais, excluídos e assim por diante.
O que o senhor acha do Uruguai, que legalizou a produção, a distribuição e a venda de maconha sob controle do Estado?
É uma ideia muito interessante. Ela tem que ser analisada, lembrando que o Brasil tem características diferentes das do Uruguai. Temos que acompanhar. Se der bons resultados, ela tem que ser adotada no Brasil.
Mas temos que acompanhar com cautela. Eu acho que precisamos avaliar os resultados, mas não vejo problema nenhum de aplicar isso no Brasil.
A lei que determina a política antidrogas brasileira é de 2006, mas os números do tráfico só sobem. O que está bom e o que precisa melhorar?
Tirar a pena de prisão em 2006 já foi um grande avanço, mas a questão das drogas no Brasil ainda é um tabu.
Não dá para esperar uma revolução, uma ruptura na questão das drogas. As coisas no Brasil vão aos poucos.
Foi um primeiro passo, que partiu do Legislativo. O segundo passo agora é descriminalizar, e o Judiciário é que vai poder definir as pautas e balizas, sendo agora um protagonista importante.
O senhor acha que o STF vai decidir pela descriminalização?
Eu tenho esperança que sim. O STF tem mostrado uma visão progressista, que já foi revelada em outras questões, como a da união homoafetiva. A expectativa é boa.

IDADE
38 anos
CARREIRA
Advogado, é mestre e doutor em direito penal pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo)
Professor de direito penal da USP desde 2008
De 2003 a 2007, trabalhou no Ministério da Justiça como assessor e secretário da Secretaria de Reforma do Judiciáro e Diretor de Modernização da Justiça

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