19 de outubro de 2013 | 2h 13
Roberto Romano
A coerência é uma virtude, mas precisa de outras para ser bem praticada. Sem contrapesos ela causa tragédias. Coerentes, os inquisidores processaram milhares de feiticeiras e bruxos. Também os nazistas foram coerentes com seus princípios antissemitas. Quem se pauta apenas pela coerência esquece a opacidade do mundo onde vivemos e morremos.
No Brasil constatamos fidelidades lógicas ensandecidas, como a dos ditadores que destruíram a liberdade de escrita e a livre circulação dos corpos. Persiste entre nós a coerência repressiva, com a opção preferencial pelos pobres, desde o início do Estado brasileiro.
Após o Concílio Vaticano II veio a opção preferencial da Igreja Católica pelos negativamente privilegiados (a expressão é de Max Weber). Hoje, com o papa Francisco, retorna a coerência da referida opção.
A forma coerente da nossa política se encontra no trato oligárquico. Para ele se dirigem os partidos e líderes, conservadores ou progressistas, em nome da "governabilidade". Todas essas coerências lógicas e opções têm sentido, não raro hediondo, mas efetivo. Basta conhecer a estrutura da sociedade nacional e sua história para entender o que gera a ética pervertida que domina a maioria de nossos gestores.
Existem coerências práticas, entretanto, que desobedecem a seus próprios princípios lógicos. Os estudantes de partidos e movimentos políticos minoritários, mas truculentos, quando exigem direitos reais ou supostos, não titubeiam e invadem reitorias universitárias. É a sua opção prática preferencial. Mas os seus princípios anticapitalistas exibem lógica distorcida. Como se afirmam democratas radicais, os únicos na vida civil, eles cobram eleições diretas para a direção acadêmica, sem precisar responder pelos câmpus diante da sociedade e mesmo da Justiça.
No mesmo fôlego em que defendem consulta direta para reitor, verberam quem resiste às festas nos ambientes de pesquisa e de estudo, em boa parte regadas pelo álcool e por substâncias que trazem a perda de consciência. Vejamos um ponto apenas: como se coadunam as práticas festeiras, que produzem até mortes, com o princípio lógico essencial da democracia (desde a Grécia) de responsabilização? O imposto que sustenta as universidades públicas (e boa parte das privadas) sai do bolso popular tendo em vista alguns fins, quais sejam, a pesquisa, a docência, os serviços à comunidade. Em qual ponto entram as festas? Elas não servem para a investigação, nada têm que ver com o ensino e menos ainda com o serviço social.
Mas não é aí que se encontra o ponto mais complicado. Aqueles militantes se dizem democratas porque socialistas, combatem o lucro sem peias e as instituições que o produzem. Eles invadem, perguntemos, as reitorias de universidades privadas brasileiras, mesmo das que cobram preços altíssimos, sem pesquisa e cujo ensino é lastimável? Por que motivo eles não entram à força nesses recintos?
Ali os docentes são dirigidos com mão de ferro por burocratas, funcionários e alunos não têm licença para sequer dar palpites na administração interna. Para entrar nessas escolas, professores e alunos passam pelos controladores soberanos. Nelas a propaganda consome recursos que deveriam ser aplicados na produção dos saberes. E os intrépidos invasores ignoram tal sistema de lucro e autoritarismo, sem nenhuma ação?
Entendemos o mutismo da União Nacional dos Estudantes (UNE) no caso. Ela aufere subsídios de governos coerentes com a política realista e dependem da "bancada do ensino privado no Congresso". Também ganha com a venda de carteirinhas e outras técnicas do capitalismo estatal. Mas, e os ativistas que se afirmam contrários ao status quo? O seu inimigo efetivo seria mesmo a universidade pública, a sua luta visa a destruir os setores que mais pesquisam, mais ensinam, mais prestam serviços comunitários?
Os militantes poupam os câmpus privados porque neles os proprietários não temem exigir a força para desalojar invasores. Consideram os invasores mais proveitoso para sua causa atacar instituições em que já existem meios de consulta e debate. Congregações, conselhos, diretórios estudantis, sindicatos são adereços nas universidade privadas.
Todos aqueles modos de governar existem nas universidades públicas e são acatados se professores, funcionários e alunos, partícipes da academia, sugerem melhorias na pesquisa, no ensino, no serviço à comunidade. Elemento essencial: na escola pública a autonomia não significa "soberania". Esta pertence ao povo e aos democraticamente eleitos por ele, em todos os partidos. Exigir, como o faz o DCE da USP, uma estatuinte "livre, soberana e democrática" é usurpar a prerrogativa dos que pagam impostos. Caso contrário, que proclamem a república estudantil da USP, um outro país que deve atribuir-se leis próprias, gerar e gerir fonte de renda sem ajuda de outro país, o Brasil.
Recordo aos dirigentes acadêmicos, aos professores e estudantes: a autonomia, sobretudo financeira, das instituições paulistas é garantida apenas por um decreto-lei, instrumento jurídico fragílimo. Apoiar ou tolerar a destruição em andamento é, com certeza, a maneira mais eficaz de garantir a radical mudança no estatuto jurídico da USP, da Unesp, da Unicamp, delas retirando verbas públicas, o que será fatal com a perpetuação da truculência. A instauração do ensino pago, a redução das verbas de ensino e pesquisa serão causadas pela tortuosa lógica dos que desejam controlar patrimônios do povo sem prestar contas a ninguém. O mesmo vale para seus cúmplices, estudantes e professores que hoje não se manifestam contra os violentos ou apoiam a corrosão da universidade pública paulista.
Roberto Romano, professor aposentado da Unicamp, é autor de 'O Caliderão de Medeia (Perspectiva)
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