26 de outubro de 2013

ENTREVISTA - BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS



REFERÊNCIA INTERNACIONAL DA ESQUERDA, SOCIÓLOGO VÊ RETROCESSO EM SETORES DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
RICARDO MENDONÇADE SÃO PAULO, Folha de S.Paulo, 26/10/2013
Referência de militantes de esquerda em todo o mundo, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz que que há retrocessos em segmentos dos direitos humanos no Brasil e critica a presidente Dilma por demonstrar "insensibilidade".
Segundo ele, isso fica "ainda mais evidente por conta [...] do estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos sociais".
Para Boaventura, no entanto, Marina Silva (PSB) não representa uma alternativa para a esquerda. Ele diz que sua eleição potenciaria correntes religiosas conservadoras. Além disso, entende que, na economia, Marina seria um retorno ao que havia antes de de Lula. "Ela é uma cara nova para a direita", afirma.
Boaventura veio ao Brasil para o lançamento de dois livros: "Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos" e "Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento", o segundo em coautoria com a filósofa Marilena Chaui.
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Folha - "Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos" sugere que o senhor acredita em Deus. E que Deus poderia dar mais importância para os direitos humanos. É isso?
Boaventura Santos - De fato, não. Eu não me comprometo com a existência de Deus. Sou como Pascal [1623-1662]: diria que não temos meios racionais para afirmar com segurança se Deus existe. O que podemos é fazer uma aposta. Como sociólogo, o que penso é que há muita gente que aposta na existência de Deus e organiza sua vida ao redor disso.
Estamos num momento de fortes movimentos sociais no mundo, protestos, revolta. Alguns desses movimentos trazem no seu interior pessoas que seguem diferentes religiões. Ou que transformam a religião no motivo da ação ou num impulso para a ação. Portanto, eu tive curiosidade de analisar.
A presença da religião na política está crescendo?
A religião nunca saiu verdadeiramente da política. A maneira com que a Europa resolveu a questão da separação da igreja e do Estado, no século 17, nunca foi total. A igreja continuou com grande influência. Foi assim no esforço da colonização. Ainda tem nas agendas que o papa Francisco disse recentemente que são as agendas da cintura para baixo (risos), acerca das orientações sexuais, aborto, divórcio. São questões de interesse público.
O que parece é que a crise do Estado secular trouxe uma maior presença da religião no espaço público. Começou a emergir nas TVs religiosas, sobretudo com as correntes evangélicas e pentecostais. Uma presença pública muito mais forte, mas também um interesse em influenciar a vida pública, os parlamentos.
E a esquerda com isso?
O pensamento da esquerda sempre foi muito renitente em analisar o fenômeno religioso. Se eu mantivesse essa atitude, deixaria fora da minha análise muita gente que genuinamente luta contra a desigualdade, a injustiça, a opressão. Não é gente alienada. É gente que realmente luta por um mundo melhor e que, no entanto, tem uma referência religiosa. Então escrevi o livro também para fazer as contas comigo mesmo.
Qual é a sua conclusão?
Termino dizendo que não há um Deus. Há dois: o Deus dos oprimidos e o Deus dos opressores. Enquanto a sociedade for dividida e houver tanta desigualdade social, penso que o Deus que estiver do lado dos oprimidos não se reconhece num Deus que esteja do lado dos opressores.
Sobre direitos humanos, tema do outro livro, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?
Há áreas com conquistas extraordinárias desde Lula. Toda a política de ações afirmativas, do reconhecimento de que há racismo e de que é preciso tomar medidas. Também o fato de criar um Brasil mais inclusivo e diverso. Onde vejo retrocesso é em toda a área dos direitos humanos que trouxeram no seu bojo aquilo que, para uma desenvolvimentista, pode ser considerado um obstáculo.
Os direitos humanos trouxeram consigo o reconhecimento dos direitos coletivos. E os direitos coletivos dos povos indígenas estão protegidos por convenções, aliás, que o Brasil assinou, sobretudo o convênio 169 [da Organização Internacional do Trabalho], que obriga consulta prévia, livre, informada e de boa fé. Nesse caso, tenho que dizer que tem havido retrocesso.
Tem ainda a questão de saber se a concessão de novas terras são atribuição do parlamento e não do Executivo, o que seria a mesma coisa que dizer que nunca mais haverá qualquer concessão.
Então eu acho que a presidente Dilma está a perder uma batalha e está realmente com uma grande insensibilidade ao movimento indígena camponês.
O senhor considera o governo Dilma de direita?
Eu a colocaria no mesmo pé em que coloco o presidente da Bolívia [Evo Morales] e o governo do Equador. Governos progressistas. Não os considero de direita. Eles fazem muito do que a direita sempre fez, o mesmo modelo de acumulação, neoliberalismo, aproveitaram a mesma onda de extrativismo.
Mas o que esses governos fazem e que a direita nunca fez na América Latina foi redistribuir esses rendimentos de alguma forma.
Onde mais há problemas?
Basta ver quantas vezes foram recebidas a CUT e outras entidades antes desses protestos de junho: zero. Portanto significa que a presidente Dilma tem uma grande insensibilidade social, que se tornou ainda mais evidente por conta da posição do Lula, ao estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos. Isso perdeu-se. Uma perda muito grave.
Marina Silva tem um discurso mais próximo desses segmentos. Ela serve para a esquerda?
Eu penso que não. Sou amigo da Marina Silva e comungo com ela muitas causas ambientalistas. Mas acho que não porque a dimensão religiosa que está por trás dela é uma dimensão que, no meu entender, tem um potencial mais conservador do que um potencial da Teologia da Libertação. É um potenciador de uma interferência conservadora na sociedade.
Isso pode ter outras dimensões para os direitos das mulheres, dos homossexuais, para as diversidades sexuais.
Por outro lado, sua política econômica, por aquilo que tenho visto e pelos apoios que ela recorre, é realmente uma tentativa de, com uma cara nova, uma mulher, repor o sistema que estava antes. Então eu penso que ela é uma cara nova para a direita.
Milhares foram às ruas no Brasil para protestar por diversas causas. Qual é a sua reflexão sobre o que ocorreu?
Analiso os diversos movimentos que surgiram no mundo desde 2011: a primavera árabe, o ocuppy [Wall Street, nos EUA], os indignados no sul da Europa, o movimento contra a fraude eleitoral no México, o movimento estudantil do Chile e também os protestos no Brasil.
Comparo 2011-2013 com momentos como 1968, 1917, 1848: momentos de movimentos revolucionários.
O que os caracterizam fundamentalmente? São sinais de que, em muitos países, estamos a entrar num processo de guerra civil de baixa intensidade: uma grande agitação social porque as instituições não funcionam propriamente. Há uma deterioração das instituições, uma ideia de que a democracia foi derrotada pelo capitalismo. No sul da Europa isso parece muito claro, e as ruas e as praças são os únicos espaços onde o cidadão pode se manifestar.
Quem é esse cidadão?
Um cidadão diferente dos processos anteriores. Essas revoltas são feitas, normalmente, por jovens que nunca participaram de movimento social, partidos, que nunca votaram. E de repente estão na rua. Foi assim no Egito, na Europa, nos EUA. São movimentos que surgem a partir de momentos em que as instituições parecem não dar respostas às aspirações populares. Obviamente são diferentes. Não se pode pôr a primavera árabe ao lado do Brasil ou do occupy.
O movimento do Brasil tem uma genealogia semelhante ao dos indignados. São jovens democracias onde houve uma expectativa de uma democracia com fortes direitos sociais, de educação, saúde, transporte. Uma sociedade mais inclusiva, essa era a promessa. Portanto nesses casos [Brasil e indignados], os movimentos surgem da ruína dessas aspirações.
Uma crise da democracia?
Aqui [no Brasil], a juventude se dá conta que aquela democracia que ela acreditou não funciona, está sendo derrotada pelo capitalismo. Os países dão mais atenção aos mercados internacionais, aos grandes grupos transnacionais, do que dão aos seus cidadãos. Na Europa isso é muito claro. O meu governo [Portugal] está mais atento à agência de classificação Standard & Poor's, sobre o que ela dirá amanhã sobre a taxa de rating do crédito português, do que as demandas dos portugueses. E quanto mais as pessoas vão para as ruas, mais abaixa a nota do crédito internacional. Ou seja: a democracia está sendo usada contra os cidadãos. A democracia é exercida hoje contra o bem estar. Tinha-se a ideia que caminhava-mos para um estado de bem estar. De alguma maneira, hoje, o Estado é um Estado de mal estar. O que aconteceu no Brasil, no meu entender, é essa frustração.

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