20 de outubro de 2013

Biografías? : Vida de Tolstói é tema de dois novos livros


As duas biografias se complementam: a de Bartlett busca aproximar o leitor do contexto de Tolstói. Já a de Bassínski centra o foco nos derradeiros dias do escritor
IRINEU FRANCO PERPETUO, Folha de S.Paulo, 20/10/2013
Um dos maiores escritores russos de todos os tempos foi também um pensador com influência sobre algumas figuras-chave da história do século 20, como Mahatma Gandhi. Chegam agora ao Brasil duas biografias lançadas no exterior em 2010, por ocasião do centenário de falecimento de Tolstói (1828-1910).
O próprio contraste entre os festejos da efeméride no Ocidente e o silêncio oficial na Rússia mostram o quanto o escritor ainda é incômodo em sua terra natal. "Uma das razões para isso é que, nos últimos 30 anos de vida, ele adotou ideais de vegetarianismo, pacifismo e não violência que não combinam muito com a Rússia de hoje, com sua cultura machista", disse à Folha a britânica Rosamund Bartlett, autora de "Tolstói, a Biografia"[trad. Renato Marques, Globo, R$ 69,90, 640 págs.].
"Ele é tão inconveniente hoje quanto cem anos atrás", afirmou, em 2010, o russo Pável Bassínski, autor de "Tolstói: a Fuga do Paraíso" [trad. Klara Guriánova, Leya, R$ 59,90, 480 págs.].
O autor de "Anna Kariênina" não foi mencionado em pronunciamentos de Putin ou Medvedev, não houve eventos do Ministério da Cultura nem os programas especiais de TV que são de praxe nessas ocasiões. E, apesar dos apelos generalizados, a Igreja Ortodoxa Russa recusou-se a aproveitar a ocasião para "reabilitar" Tolstói, excomungado em 1901.
Uma situação no mínimo paradoxal para um país no qual a literatura desfruta de status análogo ao da música popular no Brasil: o de item definidor da cultura nacional e de afirmação de sua identidade perante o planeta.
Embora o escritor-ícone da Rússia --seu Shakespeare, seu Camões-- seja Púchkin, ele é mais apreciado no país do que fora dele. A penetração da literatura russa no Ocidente é um fenômeno francês da década de 1880, que teve como carros-chefe Dostoiévski e Tolstói, ainda hoje os escritores russos mais valorizados no exterior.
A difusão de Tolstói no Brasil é antiga e, depois da virada do milênio, proliferaram traduções de suas obras-primas feitas diretamente do russo --com destaque para as de Rubens Figueiredo, que se ocupou de seus grandes romances, como "Anna Kariênina", "Guerra e Paz" e "Ressurreição".
As biografias recém-lançadas funcionam de modo complementar. Bartlett tem uma abordagem abrangente, procurando aproximar o leitor ocidental do contexto de Tolstói. Já Bassínski centra o foco no mesmo período abordado pelo filme "A Última Estação" (2009), de Michael Hoffman: os derradeiros dias do escritor.
Partindo de uma pesquisa sobre os ancestrais de Tolstói, o livro da britânica é daqueles a manter à mão. Índice remissivo, cronologia, árvore genealógica, mapa e caderno de imagens formam um aparato de apoio que, na edição brasileira, é enriquecido pelo meticuloso levantamento, feito por Denise Bottmann, da bibliografia do escritor no Brasil, desde o final do século 19 até hoje, indicando quais obras foram vertidas diretamente do russo e quais não.
Especialmente valoroso é o epílogo, chamado "Patriarca dos Bolcheviques", em que Bartlett narra o conturbado destino dos adeptos do escritor e de suas obras depois da Revolução de 1917.
CRISE MÍSTICA O que aproxima Bartlett e Bassínski é um evidente fascínio pelo Tolstói pós-literatura. Por volta de 1877, ele passa por uma "crise mística", da qual emerge professando uma espécie peculiar de cristianismo ascético e hostil à igreja estabelecida. Nos anos subsequentes, vai abrir mão de bens e direitos autorais, repudiar as obras-primas às quais devia sua reputação e adquirir uma aura de santo que transcenderia largamente as fronteiras da Rússia.
Bartlett esmiúça o empenho de Tolstói no campo que talvez pudéssemos chamar de "educação popular" e descreve detalhadamente um dos momentos decisivos para a consolidação de sua autoridade moral: a grande fome da década de 1890, na província de Riazan, em que a ajuda do escritor aos camponeses contrastava dramaticamente com a imobilidade do governo dos czares e a indiferença dos latifundiários.
Embora não os explore a fundo, a autora traça paralelos entre a vida pessoal de Tolstói e seus grandes romances. Nesse aspecto, Bassínski é mais radical: ele parece depreender que qualquer interessado na vida do escritor já conhece "Anna Kariênina" e "Guerra e Paz", passando ao largo dessas obras. Seu objetivo é investigar os dez últimos dias da vida do escritor.
Na noite de 27 para 28 de outubro de 1910, aos 82 anos, Tolstói evadiu-se de sua propriedade rural, em Iásnaia Poliana --uma fuga que só terminaria em 7 de novembro do mesmo ano, com sua morte, na estação ferroviária de Astápovo. Bassínski dedica um capítulo para cada dia da jornada, traçando sua biografia em retrospectiva.
O casal Tolstói mantinha diários que, por determinação do marido, eram lidos por ambos os cônjuges --e, portanto, às vezes mais ricos em recados de parte a parte do que em confissões (quando ele resolveu ter privacidade, começou um outro diário, escondido de sua mulher, Sófia Andrêievna).
Membros da família, amigos e agregados também anotavam suas rotinas, e Bassínski se enreda nesse cipoal de telegramas, cartas e recordações para tentar entender a crise que levou o escritor a fugir.
São abordados com especial detalhamento os sete testamentos de Tolstói, bem como o embate por sua "herança espiritual" entre Andrêievna, e Vladímir Tchertkov, amigo e seguidor que se dedicou a copiar, preservar e divulgar seu legado (sua edição das obras completas do autor continua a ser a principal referência na área).
Embora se baseie exclusivamente em evidências documentais, o autor está longe de ser um narrador distanciado. Assim, ao descrever Tchertkov, afirma: "Não respeitá-lo é impossível. Mas simpatizar com ele é difícil". As chantagens e ameaças de suicídio de Sófia Andrêievna e a deterioração de sua saúde mental também merecem narrativa minuciosa, porém com um toque de simpatia pela mulher "que conviveu quase 50 anos com o homem mais complicado do século 19 e dele teve 13 filhos".
Best-seller na Rússia, onde foi laureada com o prêmio Grande Livro, a obra deixa-se ler como literatura --mas não chega a se aprofundar em questões literárias.
Somadas, as biografias de Bartlett e Bassínski passam de mil páginas "" o tamanho de um romance de Tolstói. Porém quem quiser entender "Anna Kariênina" ou "Guerra e Paz" vai ter que procurar informações em outro lugar.

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