20 de outubro de 2013

Efeitos do Bolsa Família após dez anos são desiguais


Trajetória de famílias em favela nos arredores de Recife revela contrastes
Programa de combate à pobreza criado há uma década atende 13,8 mi de famílias e consome menos de 0,5% do PIB
FERNANDO CANZIANENVIADO ESPECIAL A PERNAMBUCO, Folha de S.Psulo, 20/10/2013

Os dez anos do programa Bolsa Família, completados nesta semana, podem ser vistos sob várias óticas.
Na dos números, um salto de 3,6 milhões para 13,8 milhões de famílias beneficiadas por um orçamento de R$ 18,5 bilhões neste ano.
Um investimento pequeno: o programa custa menos de 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto). Só em juros de suas dívidas, governos federal, estaduais e municipais gastaram 5% do PIB (R$ 230 bilhões) nos últimos 12 meses.
Por trás dos números, famílias. A Folha acompanha duas delas há oito anos no Suvaco da Cobra, favela miserável vizinha ao Recife, em Jaboatão dos Guararapes.
Assim como milhões de outras no programa, elas têm trajetórias distintas; no caso, opostas. Mas ambas ascendentes em termos materiais. E extremamente dependentes de recursos do Estado.
Os Silva são o sonho de formuladores de políticas voltadas à educação, como o Bolsa Família.
Os três filhos adolescentes nunca abandonaram a escola e evoluíram rapidamente.
A cada visita da Folha, leram um texto e escreveram um ditado, cada vez melhor.
A família vive praticamente do Estado. Do Bolsa Família e de dois benefícios federais (do pai, por invalidez; e do filho mais novo, portador de Síndrome de Down).
A poucos metros dos Silva, os Dumont. Na primeira visita, em 2005, eram 10. Na semana passada, 17, 7 a mais nascidos de filhas que engravidaram adolescentes e abandonaram a escola.
As quatro filhas mais velhas da matriarca Sueli reproduziram a trajetória da mãe, e a sua dependência no Bolsa Família. No total, há sete beneficiários no clã.
Entre os Silva e os Dumont, é mínima a renda gerada pelos bicos e trabalhos precários que conseguem.
Lula é endeusado até hoje. Também gostam de Dilma, embora haja ressentimento em relação à presidente por conta da inflação neste ano.
No Suvaco da Cobra, os adultos dessas famílias conhecem bem Dilma, demoram a lembrar que Eduardo Campos governa Pernambuco e reconhecem o nome de Marina Silva como o daquela "moça magrinha".
Segundo o último Datafolha, dependendo do cenário, Dilma tem 54% das intenções de voto no Nordeste. Marina, 27%; e Campos, 19%.

ENTREVISTA - GREGORY DUFF MORTON
Programa só dá autonomia a parcela das beneficiárias
AMERICANO MOROU DURANTE DOIS ANOS NO SERTÃO DA BAHIA PARA ESTUDAR DESIGUALDADE ENTRE OS QUE RECEBEM O BOLSA FAMÍLIA
RICARDO MENDONÇADE SÃO PAULO
Interessado em estudar o impacto do Bolsa Família nas relações de poder entre homens e mulheres, o antropólogo norte-americano Gregory Duff Morton morou dois anos numa das regiões mais pobres do sertão da Bahia.
O objeto de pesquisa de seu doutorado na Universidade de Chicago (EUA) são as quase cem famílias com as quais conviveu num assentamento e num povoado na zona rural de Vitória da Conquista.
As fazer o recenseamento de cada residência, ele notou uma "surpreendente desigualdade" entre os inscritos no Bolsa Família. Essa diferença, descobriu, influencia as relações de poder. Fazendo entrevistas semanais, ele percebeu que a tão propagandeada autonomia das mulheres do Bolsa Família só ocorre nas famílias tidas como "mais prósperas" das comunidades.
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Folha - Sua pesquisa fala em grande desigualdade entre os beneficiários. Ficou surpreso?
Gregory Duff Morton - Bastante. Principalmente com a diferença entre as desigualdades no assentamento e no povoado. No povoado, a desigualdade é mais aliviada, pois a maioria tem algum vínculo de parentesco. No assentamento, uma comunidade mais nova, ainda não há esse processo redistributivo. Mas quero destacar esse ponto: muitos acreditam que todos que recebem o Bolsa Família são iguais. Isso não é verdade, de jeito nenhum.
Como é a desigualdade?
As famílias mais pobres acabam gastando todo o dinheiro do Bolsa Família com as necessidades mais básicas da vida: alimentação, cadernos, roupa básica e, às vezes, calçado para as crianças. O dinheiro só dá para isso. Nas famílias que têm uma outra fonte de renda e uma certa prosperidade, o dinheiro cria formas de permanência.
O que é isso?
Uma mesa, um guarda-roupa, um tanque, um fogão. Agora, existe um instrumento que permite a criação dessa permanência: a prestação. Mesmo com o Bolsa Família, essas famílias prósperas não teriam como comprar nada de permanente sem o crédito.
E qual é o impacto no gênero?
É só nas famílias mais prósperas que o Bolsa Família fortalece a mulher. Nas mais pobres, não acontece.
Como assim?
Nas famílias mais prósperas, acontece uma divisão da renda. O dinheiro do Bolsa Família vai para a mulher; as plantações na roça ou o trabalho de diarista geram uma renda que vai para o homem. Nas famílias mais pobres, não importa a origem da renda, tudo é gasto com o básico.
A mulher só tem autonomia quando o dinheiro é dividido?
O que importa de fato não é a divisão do orçamento, mas a capacidade de gerar formas de permanência. É a mulher poder dizer "essa geladeira é minha", "eu comprei essa geladeira", "essas três cabeças de gado são minhas". Isso vai impactar a sua capacidade de influenciar nas decisões do domicílio.
Numa família pobre, o que significa autonomia da mulher?
Autonomia, nesse contexto, nunca é independência. Não significa que ela vai viver só, tomar decisões sem consultar os demais. Autonomia é um discurso no qual a mulher pode se entender como origem de uma decisão. Quando você pergunta "como isso aconteceu?", a mulher autônoma pode dizer: "Fui eu que decidi", "eu que participei dessa decisão", "eu que queria doar a vaca para o meu filho", "eu que queria comprar a casa nova". É um discurso de responsabilidade para decisões.

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