07 de outubro de 2013 | 2h 08
Sergio Fausto* - O Estado de S.Paulo
O interesse pelo Chile vai muito além da estreita e longa faixa de terra na qual o país se espreme entre o Oceano Pacífico e a Cordilheira dos Andes. Nos últimos 40 anos, aproximadamente, desenrolou-se ali uma história capaz de mobilizar corações e mentes em toda a América Latina: a fracassada experiência, com Salvador Allende, da via chilena para o socialismo, de curta duração (1970-1973) e final dramático; a brutalidade da ditadura de Augusto Pinochet, com suas dezenas de milhares de torturados, mortos e/ou desaparecidos e suas reformas econômicas liberais, de 1973 a 1989; e a emergência do Chile como país democrático e mais próspero a partir de 1990.
Sobre o significado desse período da História chilena, competem entre si três narrativas distintas, quando não opostas. A narrativa de inspiração neoliberal atribui os méritos do bom desempenho econômico do Chile desde 1990 às reformas realizadas sob a ditadura. Na sua versão pinochetista, as atrocidades cometidas teriam sido o necessário remédio amargo para livrar o país da "ameaça comunista" e liberar forças de mercado antes atrofiadas. No polo oposto, tem-se a narrativa de uma esquerda nostálgica do governo de Allende, profundamente crítica do "modelo chileno". Essas duas narrativas, embora com valorações opostas, coincidem em dizer que pouco mudou de essencial no país no atual regime democrático. A terceira narrativa é a articulada no interior da coalizão de centro-esquerda que comandou a política chilena em quatro dos cinco mandatos presidenciais desde a ditadura. Para a Concertación, o Chile tornou-se "outro país" nas últimas duas décadas. Em linhas gerais, os fatos dão respaldo a essa narrativa.
Nesse período, não apenas o Chile foi o país latino-americano que mais aumentou sua renda per capita, como também o que mais progrediu na redução da pobreza. Esse resultado não teria sido alcançado sem um conjunto amplo de políticas e programas sociais. Na área da educação, o país destaca-se como um dos que mais evoluíram na última década em rankings internacionais. Além de seguir em frente, os chilenos passaram a limpo o que havia ficado para trás: uma comissão da verdade identificou e reconheceu os crimes da ditadura e iniciou um programa de reparação às vítimas. Pinochet não terminou seus dias na cadeia, mas os militares subordinaram-se ao poder civil e o general acabou desmoralizado quando se descobriu que tinha recursos "não contabilizados" nos Estados Unidos. Não menos importante, o Chile construiu uma democracia capaz de operar com alternância normal de poder e acordos programáticos entre coalizões estáveis de partidos.
Inegáveis, os avanços das duas últimas décadas revelam hoje, porém, suas insuficiências e contradições. Coube ao movimento estudantil, primeiro o secundarista e depois o universitário, pôr o dedo na ferida aberta por expectativas que o progresso chileno criou, mas não se mostrou capaz até aqui de atender. O ponto politicamente mais sensível está num sistema de educação superior que obriga os alunos a assumir dívidas para financiar seus estudos, mas não os capacita para obter empregos com salários que permitam pagar o empréstimo contraído. Também sensível é a diferença de qualidade entre escolas privadas, escolas privadas subsidiadas pelo governo e escolas públicas. Com a universalização da educação secundária, a matrícula nas universidades cresceu rapidamente, incluindo muitos jovens de famílias de menor renda, que vêm de escolas secundárias piores e enfrentam condições mais adversas para conseguir um bom emprego, uma vez formados nas universidades.
A simpatia angariada pelo movimento estudantil mostra que seus integrantes tocaram num nervo exposto da sociedade chilena: a percepção de que, a despeito dos avanços econômicos e sociais das últimas duas décadas, o Chile continua a ser um país de oportunidades muito desiguais. Ao sentimento de injustiça soma-se o descrédito da política partidária, explicada em parte pela vigência de um sistema eleitoral que força um empate legislativo entre a Concertación, de centro-esquerda, e a Alianza, de centro-direita, e virtualmente impede a representação política fora das duas grandes coalizões. O sistema eleitoral e o modelo educacional são duas heranças até aqui quase intocadas da ditadura.
Em novembro haverá eleições gerais no país. Tudo aponta para o retorno de Michelle Bachelet. Neste que provavelmente será o seu quinto mandato presidencial, a Concertación terá de encontrar resposta para os temas interligados da desigualdade e da representação política. Quando não equacionados, a legitimidade da democracia se vê em xeque.
É preciso reformar o sistema de ensino, aumentando a participação direta e indireta do governo, mas sem cair na tentação de estatizá-lo. Cabe também reforçar o subsídio aos benefícios previdenciários dos trabalhadores que não acumulam o suficiente para uma pensão digna na aposentadoria. Iniciativas como essas exigem elevar a carga tributária. Há condições para tanto, mas existem limites que não devem ser ultrapassados, sob pena de prejudicar a competitividade das empresas chilenas. Da mesma forma, deve-se ampliar a representatividade no sistema político sem, no entanto, atiçar a fragmentação partidária e a instabilidade parlamentar. Economistas e cientistas políticos oferecem fórmulas eventualmente úteis para a solução dessas questões. E no Chile não faltam profissionais competentes nessas áreas, à esquerda e à direita. Mas a política é mais arte do que ciência.
Nas duas últimas décadas o Chile tem mostrado competência na arte de combinar e recombinar políticas liberais e social-democratas. Essa competência está em teste novamente. Se comprovada mais uma vez, será um alento para o reformismo progressista em toda a América Latina.
*Sergio Fausto é diretor executivo do IFHC e membro do Gacint-USP. E-mail:sfausto40@hotmail.com
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