- O ESTADO DE S.PAULO
16 Outubro 2014 | 02h 05
O debate entre os candidatos à Presidência da República, Dilma Rousseff e Aécio Neves, realizado pela Rede Bandeirantes de rádio e televisão, na terça-feira à noite, teve méritos indiscutíveis. Pela primeira vez os dois se puseram frente a frente num incrível embate direto. Foi emocionante.
A Band mais uma vez brilhou, fiel à sua tradição. Já nos tempos em que a ditadura se desmilinguia, enquanto suas concorrentes ainda se refestelavam na videobajulação diária, a Bandeirantes inovou ao apostar num jornalismo menos monologado, aberto ao confronto de ideias. O programa Canal Livre vem daquela época e está aí até hoje (vai ao ar nas noites de domingo) como um dos espaços plurais da TV brasileira. Não por acaso, as melhores mesas-redondas ao vivo, quando se fecham as urnas em dias de eleição, são as da Band. O debate de anteontem apenas confirmou o DNA - e com absoluto sucesso. Durante boa parte do horário foi líder de audiência.
Só houve um problema. Na terça-feira, nos estúdios da emissora do Morumbi, o jornalismo foi convidado a se retirar do recinto e, infelizmente, aceitou o convite. Ou foi forçado a aceitá-lo. Como sabemos, o marketing político (e, nesse quesito, as duas candidaturas se põem de acordo) tem sido cada vez mais impositivo em fazer valer suas exigências. O marketing não gosta do jornalismo independente e joga pesado. A Band talvez não tenha tido alternativa. Ao longo de décadas ela fez dos jornalistas o maior trunfo nos encontros entre candidatos. Agora teve de ceder.
O problema não é da Band e não se circunscreve à Band. Não é dessa ou daquela emissora em particular. É de ordem geral. Aparece a toda hora, em qualquer ambiente em que alguém queira montar um encontro entre candidatos. O problema está na cultura política que vem predominando, na qual o jornalismo é visto como coadjuvante (dispensável) do marketing. Aos olhos dessa mentalidade, o jornalista é, no máximo, um segurador de microfone. Daí que, se já existe um par de microfones fixado na bancada em que o político discursa, jornalistas não têm serventia. Dois ou três cinegrafistas são suficientes, desde que não venham com enquadramentos maliciosos, por favor. Segundo essa "cultura apolítica", a imprensa seria mera transportadora de declarações. Se o político dispõe de uma câmera pela qual pode entrar na sala de estar do eleitor, o político mesmo entrega as suas declarações ao cidadão. Para que intermediários?
Há dois anos, quando tivemos as eleições municipais, o mesmo problema já se manifestava. Progressivamente, alguns dos nomes mais respeitáveis da imprensa nacional foram reduzidos a mestres de cerimônias. Tiveram de renunciar ao direito (ou mesmo dever) de questionar os debatedores. Agora, em 2014, a coisa piorou. O saldo geral dessa rendição irrefletida e generalizada foi ao ar, escancarado, na terça à noite. Os dois candidatos manipulavam cifras à vontade. Quanta desfaçatez! Impossível saber qual dos dois distorceu mais. O eleitor que se virasse sozinho entre todas aquelas distorções. Não podia contar com ninguém para esclarecer números, sentenças, dados históricos. Num teatro mais absurdo que o mais absurdo teatro do absurdo, o mesmo tribunal que Aécio invocava para se dizer consagrado Dilma citava para declará-lo condenado. Valia tudo no duelo entre dois monólogos de duas alucinações egoicas.
"A senhora não enxerga", acusava um. "Quem não enxerga é o senhor, candidato!" O outro se punha em brios: "A senhora está sendo leviana". Ao que ela devolvia: "Leviano é o senhor". Como numa briga de crianças que se xingam, dois adultos disputavam para ver quem se saía melhor na arte de desinformar o País.
Agora pense um pouco. Para que, afinal, nós precisamos de imprensa? Nós precisamos de imprensa porque o poder mente, mesmo quando seus agentes não desejam mentir. O poder mente e, quando sua fala não encontra anteparos, ele mente absolutamente. Na terça passada o poder monopolizou o espaço e ficou ali em seus delírios anormais, sem anteparo algum. O que nós vimos ali foi o retrato concentrado e completo do que aconteceria com o País se nós abríssemos mão de ter imprensa. Estaríamos entregues completamente aos delírios do poder.
Não adianta argumentar que um lado do discurso do poder (o PT) serve de anteparo ao outro lado do discurso do poder (o PSDB). Isso é uma falácia, uma ilusão que só interessa ao negócio do marketing. Essa falácia corrói as bases da democracia. Alimenta o engano fatal de que pode haver democracia sem imprensa.
De uma vez por todas: a verdade não é a média aritmética entre duas mentiras. Muito menos entre duas mentiras partidárias. PT e PSDB, com a licença dos fundamentalistas de um lado e de outro, são apenas os dois lados do mesmo discurso, o discurso do poder. Com sinais trocados, são a mesmíssima forma de representar o mundo. Se não for exposto à sua crítica necessária, que só pode vir da imprensa independente, o discurso do poder reinará absoluto como indutor do fanatismo e como agente de morte da razão. Não que a imprensa sozinha seja a nossa reserva de razão. Ela não é. Na melhor das hipóteses, serve para criticar, para se contrapor, para contestar o discurso do poder. É assim que ela serve à razão.
Sem imprensa independente não há democracia, do mesmo modo que sem jornalistas não há um bom debate entre candidatos à Presidência da República. Os partidos que aí estão, contudo, não acreditam na democracia. Acham que o marketing basta. Tripudiam sobre os fatos. Não acreditam na política, só na sedução publicitária. Não acreditam na imprensa. Não reconhecem nos jornalistas a função de arguir o poder. Esses partidos e seus marqueteiros autoritários estão fazendo de tudo para dobrar os meios de comunicação às suas conveniências. E estão conseguindo.
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da Eca-USP
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