RIO — “É por isso, provavelmente, que a polêmica contra mim se reacende sempre que houver um pretexto”. Assim o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) se defendia em uma entrevista concedida em 1966 à revista alemã “Der Spiegel” das fortes acusações do livro de Alexander Schwan sobre sua passagem pelo Partido Nacional-Socialista. Por conta dessa mancha profunda em sua biografia, a discussão sobre o passado de Heidegger costumava ficar no campo do ataque contra defesa, ou das conclusões apressadas contra interpretações apologéticas, numa relação quase sempre clubística ou plebiscitária. Ficava, até a publicação na Alemanha dos chamados “Cadernos negros”, em março deste ano.
Este lançamento, seguido de dois livros escritos pelo editor dos “Cadernos negros”, o também filósofo alemão Peter Trawny, deu estofo teórico e documental para que a discussão se aprofunde. Contudo, também reacendeu uma vez mais a polêmica do que já é conhecido na comunidade acadêmica como “caso Heidegger”. As razões para essa chama se reavivar são explícitas: nestas anotações pessoais, cheias de especulações filosóficas e referências históricas, aparecem ao menos 12 citações ao povo judeu. Entre essas passagens, há críticas a um modo de pensar e agir que seria característico — mas não exclusivo — dos judeus, como o dom para o cálculo e o fato de não terem raízes em uma terra ou nação. Ambas características são contrárias ao modo de pensar que Heidegger explicitou em seus mais de cem livros escritos.
“Judaísmo no mundo”, escreve Heidegger em seu cadernos, “é incontrolável em todos os lugares e não precisa se envolver em ações militares enquanto continua a desdobrar suas influências, ao passo que somos obrigados a sacrificar o melhor sangue dos melhores do nosso povo”.
Para discutir os novos desenvolvimentos dessa polêmica, o XIX Colóquio Heidegger convidou para um debate Trawny e outros especialistas na obra do filósofo que influenciou nomes importantes e diversos do século XX: de Jean Paul Sartre a Giorgio Agamben, indo até pensadores de origem judia, como Hannah Arendt, Herbert Marcuse e Jacques Derrida. O evento acontece na Unifesp, em São Paulo, de 23 a 25 de outubro.
— Para os nossos padrões, da pesquisa histórica do antissemitismo, não temos alternativa: temos que dizer que essas passagens nos “Cadernos negros” são antissemitas, e, sim, como muitos europeus nos anos 20 e 30 do século passado, Heidegger era em algum grau um antissemita. Isto não é uma questão de opinião: se aceitarmos esses parâmetros históricos, se aceitarmos a pesquisa de historiadores bem conhecidos, nós não temos alternativa. E quem é capaz de duvidar desses parâmetros? Quem tem a competência para duvidar? Por que nós deveríamos duvidar? — argumenta Trawny, que faz questão de deixar bem clara sua ressalva. — Eu não acredito que o pensamento de Heidegger como um todo foi contaminado pelo antissemitismo ou pelo Nacional-Socialismo.
Esta, entretanto, não é uma opinião unânime. Há argumentos que chegam a defender que a filosofia heideggeriana seria explicitamente nazista. Variações mais suaves ou mais agudas deste tipo de interpretação ocorrem principalmente na França, país que “salvou” Heidegger logo após a Segunda Guerra, quando ele ficou proibido de lecionar na Alemanha.
— Os franceses nunca se perdoaram — brinca o professor Edgar Lyra, da PUC-Rio, outro que participará do colóquio. — Temos que lembrar que filosofia não é doutrina, mas uma proposta. Temos que ter sempre uma leitura crítica.
Para ele, a posição heideggeriana sobre os judeus não pode ser vista sob o ponto de vista racial ou biológico, mas ideológico. Seria parecida com a ressalva que o filósofo faz ao chamado americanismo, ao bolchevismo e, até mesmo, num segundo momento, ao nazismo. Esse caráter da calculabilidade, por exemplo, seria uma expressão do triunfo do que ele chama de “técnica” em todo o planeta: a hegemonia da maquinação na época contemporânea.
— Por que ele, quando fala do judaísmo, não fala dos judeus pobres da Polônia ou dos sefarditas, por exemplo? — diz Lyra.
No total, são nove volumes de cadernos não diários de capa negra — daí seu nome — que deveriam vir a público apenas ao fim da edição de toda a obra do filósofo, a cargo da editora alemã Vittorio Klostermann. Os três primeiros volumes, relativos aos anos 1930 e 1940, foram publicados antes do prazo dado inicialmente a pedido dos herdeiros, porque trechos polêmicos descontextualizados já teriam vazado. Nestes primeiros volumes já se encontrariam as declarações “insuportáveis”, nas palavras de Trawny.
— Ele se imaginava como um pensador, não como um assassino. E como um pensador pode ser culpado? Essa é uma questão muito séria. Claro, (Hannah) Arendt escreveu “As origens do totalitarismo”, mas estou bastante seguro que Heidegger entendeu esse livro como uma obra de História. E, por outro lado, ele pensava que a verdadeira catástrofe era o declínio da Alemanha — explica Trawny, lembrando que Heidegger muito raramente se pronunciou sobre os campos de concentração ou o Shoah.
Não se pronunciou diretamente sobre os campos da morte, mas também não “surfou” na onda antissemita. O fato destes cadernos serem publicados somente agora demostram também que Heidegger não quis aproveitar os ventos soprados abertamente contra os judeus do período para se promover. Isso, mesmo que tenha assumido o reitorado da tradicional universidade de Freiburg em 1933, e, assim, se tornado um dos primeiros reitores filiados ao partido nazista.
— Não se pode entender o ingresso de Heidegger no partido Nacional-Socialista se não se rastrear seu interesse por renovar a universidade — explica o professor mexicano Angel Xolocotzi, que também vai participar do evento em São Paulo. — A aceitação da reitoria não será outra coisa que a última tentativa desse ideal, ainda que nos “Cadernos negros” ele registre sua falta de convencimento, já que no dia em que aceitou ser reitor escreveu:“pela primeira vez atuo contra minha voz mais íntima”.
Xolocotzi concorda que não se pode ler essas passagens novas fora de seu contexto histórico, ou mesmo do próprio caminho percorrido por Heidegger. Seria a única forma de se fugir das polêmicas vazias. Para ele, muito provavelmente os “Cadernos negros” não mudarão a forma como interpretamos a filosofia heideggeriana, mas certamente começaram uma outra polêmica dentro da principal polêmica.
Como o volume de texto publicado foi grande, mais de mil páginas de leitura densa e complexa, a diatribe em cima dos “Cadernos...” se deu principalmente sobre os livros que Trawny publicou desde então: “Heidegger und der Mythos der jüdischen Weltverschwörung” (algo como “Heidegger e o mito da conspiração mundial judia”) e “Irrnisfuge: Heideggers Anarchie” (numa versão livre: “Variações em torno de um erro: a anarquia de Heidegger”), ambos já traduzidos para o francês, mas sem previsão para o português.
Antissemita, nazista, ou um homem com muitos dos graves preconceitos do período, mas que jamais confundiu a esfera pública com a privada. Independentemente de como o encaram, os estudiosos do filósofo concordam em algo: a obra de Heidegger continua sendo um dos principais impulsos para se pensar o mundo contemporâneo.
— Os problemas políticos em Heidegger são razões para uma leitura mais e mais intensa e cuidadosa, porque filosofia quer dizer ter problema, ter questões. Alguém que para de ler um filósofo porque encontra muitos e difíceis problemas no seu pensamento não é com certeza um filósofo — argumenta Trawny.
DEBATES NO BRASIL
O impacto da publicação dos “Cadernos negros” sobre as leituras do autor de “Ser e tempo” vai ser o mote do XIX Colóquio Heidegger, que será promovido pela Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof) na Unifesp, em São Paulo, entre os próximos dias 23 e 25. O editor dos “Cadernos negros”, o alemão Peter Trawny, fala sobre os diários numa mesa na sexta-feira, às 14h, com o mexicano Angel Xolocotzi e o brasileiro Ernildo Stein. O professor da PUC-Rio Edgar Lyra fala logo depois, às 17h30m, sobre o tema da violência em Heidegger. Um dos principais tradutores do filósofo no Brasil, Marco Casanova faz uma apresentação sobre “abismo e destruição no pensamento tardio de Heidegger” no sábado, em mesa a partir das 10h, com Róbson Ramos dos Reis e Éder Soares Santos. Professor da Unifesp, Alexandre de Oliveira Ferreira discute o totalitarismo em mesa na quinta-feira, às 14h, que terá também Sandro Sena e Acylene Cabral Ferreira. A programação completa pode ser encontrada no site da Anpof.
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