16 de fevereiro de 2010

Sangue frio no país das cinzas    VIOLENCIA

Jornal Cruzeiro do Sul/SP

Terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Dona Maria Luiza, meus sentimentos.
O trágico assassinato do seu filho, Alcides do Nascimento Lins, de 22 anos, é de uma dramaticidade angustiante, devastadora, insuportável. Seu filho estava em casa, na comunidade Vila Santa Luiza, bairro da Torre, em Recife. Noite do dia 5 de fevereiro. Dois bandidos o mataram com dois tiros na cabeça, à queima-roupa, porque ele não sabia onde estava o homem que eles procuravam numa casa vizinha. Um crime a sangue frio.
Hoje, a senhora chora. Minha vida acabou , lamentou a sua voz diante das câmeras de televisão. O luto cobriu o seu rosto de tristeza e dor.
Há três anos, a senhora vibrou com a entrada de Alcides na Universidade Federal de Permambuco no curso de Biomedicina. Ele havia sido aprovado em primeiro lugar entre os alunos vindos da escola pública. Abrira portas para vencer a barreira da pobreza e ingressara no mundo da verdadeira revolução pessoal, que é a da educação. Estudante aplicado, conseguiu oportunidade de estágio que começou a transformar a vida da família. A senhora, dona Maria Luzia, deixou de ser catadora de lixo. Alcides ia se formar neste ano. Aqueles dois tiros colocaram um fim nessa história de sonho. esperança e força de vontade que serve.
Dona Maria Luiza, a morte de Alcides é daqueles acontecimentos que paralisam uma nação e calam os discursos dos políticos que exibem estatísticas de segurança com leituras que lhes são favoráveis. Enquanto que nos balanços oficiais cada morte é um número, para as vítimas e suas famílias e amigos todo corpo que cai representa uma tragédia. É uma história, um sonho, uma vocação para a vida, que de repente deixam de existir no instante em que bandidos apertam o gatilho de uma arma de fogo.
A indignação é tão devastadora que o jornalista Geneton Moraes Neto, ao comentar a morte de Alcides, escreveu: Neste momento, só há um sentimento possível: a enorme, a indescritível, a imensurável, a monstruosa vergonha de ser brasileiro. Palavras que constituem um protesto solitário, mas intenso. Ele recebeu apoio, mas também críticas.
Pela história, pelo caráter, pelo símbolo da possibilidade de superação por meio dos estudos, a morte de Alcides tem a dimensão de crimes como os que vitimaram a missionária Dorothy Stang, o seringueiro e ativista ambiental Chico Mendes, o brasileiro Jean Charles de Menezes. A repercussão desses crimes, aqui e fora do país, revela uma guerra civil silenciosa em andamento no Brasil camuflada pela propaganda dos governos e pela banalização da violência. Quem pode se protege em condomínios fechados e bem fortificados, utiliza carros blindados e câmeras de segurança: quem não pode fica sujeito aos ataques dos bandidos na rua, nos semáforos, em casa e nos locais de trabalho.
Há dois anos, pesquisa da Rede de Informação Tecnológica Latino Americana (Ritla) mostrou que em 10 anos (1996-2006), o número total de homicídios registrados em todo o Brasil passou de 38.888 para 46.660 um aumento de 20%, levemente superior ao crescimento da população, que foi de 16,3% no mesmo período.
O assassinato de Alcides e as notícias de violência diária em todo o país são indicadores de que não há mudanças nos balanços oficiais.
Se Alcides fosse norte-americano, organismos de defesa da pessoa estariam a esta hora cobrando providências urgentes das autoridades brasileiras. Até o momento em que este texto é escrito, um dos dois acusados de matar o rapaz foi preso. Alcides não era norte-americano, mas brasileiro. Por isso, é a sociedade brasileira que estará atenta para cobrar eficiência no trabalho das autoridades responsáveis pelo caso. Se a justiça não pode trazer Alcides de volta, pelo menos tem a obrigação de punir os responsáveis pela sua morte.
Veja, dona Maria Luiza, o quanto há de sofrimento na perda do seu filho. Sofrem a senhora, as suas três filhas, os companheiros de trabalho e de faculdade que aprenderam a admirar e se habituaram ao jeito de ser de Alcides - tão alegre, tão menino aos 22 anos, tão cheio de vida. Sofre a nação inteira.
Dona Maria Luiza, sabemos que, vivendo numa camada social em que as pessoas lutam para ter o que comer no dia seguinte, a senhora batalhou muito para o seu filho chegar à universidade. Sabemos da sua força e da generosidade do seu coração de mãe. Então, receba o nosso abraço, juntemos as nossas lágrimas. É tudo o que podemos fazer num esforço coletivo para lhe oferecer um pouco de consolo e paz.
Links relacionados: Assassino de estudante é preso



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