Para a autora Ligia Maria Pereira o ex-ministro da C&T nunca deixou de acreditar que a Ciência pode transformar o mundo em um lugar melhor para a humanidade
Quando a historiadora e doutora em sociologia pela Universidade de Paris, Ligia Maria Leite Pereira, autora de mais de 25 livros, entre eles “Último Pioneiro do Ar – o Vôo do Brigadeiro Doorgal”, “Presidente Antônio Carlos Magalhães” e “Sistema Confea Crea: 75 Anos Construindo uma Nação”, começou a desenvolver o projeto para escrever a biografia do cientista José Israel Vargas, ela sabia que passaria alguns meses mergulhada no dia a dia de um dos nomes mais importantes para a ciência e a cultura, no Brasil e no Mundo. Só não desconfiava que estaria diante de um homem, que, aos 87 anos, trabalha sem parar, com energia e muito bom humor, acompanhado de uma memória excepcional.
Lançada em março deste ano, a biografia do pesquisador, que foi ministro de Ciência e Tecnologia entre 1992 e 1998, nas gestões dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, “Desafiando Fronteiras, Trajetória de vida do cientista José Israel Vargas” é fruto de um trabalho conjunto da historiadora Ligia Maria Leite Pereira com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Publicada pela editora UFMG, a biografia traz quase 500 páginas da trajetória do cientista, que se confunde com vários capítulos da história do País.
“Na época em que fiz o livro sobre os 25 anos da Fapemig, o então presidente, Mario Neto Borges, manifestou interesse em realizar a biografia. Estas conversas foram no segundo semestre de 2013, mas o trabalho só começou em março de 2014 e eu tive sete meses para concluir todo o livro. Foi um trabalho intenso, em todos os sentidos. Quanto mais eu pesquisava, mais encantada eu ficava com os projetos realizados por ele”, conta Ligia.
No início do projeto, uma das principais preocupações da autora foi a dinâmica das revisões, que seriam feitas pelo cientista. Ligia conta que ficou preocupada com o rigor do cientista e com os prazos. “No contato direto com ele, fiquei impressionada com a agilidade dele em devolver as revisões. Estou acostumada a fazer biografias de pessoas que estão vivas e nunca vi tanta rapidez nas revisões. Ele é detalhista, mas muito rápido. E emana muito energia”, conta Ligia.
Durante todo o tempo em que se aproximou do cientista para escrever o livro, Ligia destaca o bom humor do pesquisador. “Ele sempre tem um comentário espirituoso, interessante. Trata-se realmente de uma pessoa única, tem uma solidez na formação impressionante, além de uma excepcional memória e capacidade de comunicação. Desde os tempos em que cursou a faculdade de Química na Universidade Federal de Minas Gerais coleciona amigos espalhados pelo mundo”, detalha.
O mineiro, de Paracatu, que despontou em projetos realizados na Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde fez doutorado, e em missões junto à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em Viena, exala paixão pela Ciência. Com quase nove décadas de vida, o pesquisador ainda lamenta que a Ciência não tenha o devido valor no Brasil.
A biografia destaca que a Ciência faz parte da natureza de Israel Vargas e moldou sua maneira de ser e de ver o mundo. No livro, fica claro a busca do pesquisar em transformar o mundo em um lugar melhor para as atuais e futuras gerações. “Ele é um humanista. Na época em que estudava Química, a faculdade era no mesmo prédio do curso de Filosofia, ele fez muitos amigos na área de humanas. Este lado humanista é muito forte em Vargas, que acredita no poder da ciência e da tecnologia em transformar o mundo em um lugar melhor para a humanidade”, ressalta Ligia.
Na noite de lançamento do livro, Vargas se emocionou diversas vezes, mas fez questão de dizer que “não há desenvolvimento sem energia, não há energia sem engenharia e não há engenharia sem ciência”. Dotado de humildade, embora traga no seu currículo o exercício da Presidência do Conselho Executivo da Unesco, onde coordenou o projeto da inclusão de Goiás Velho e de Brasília na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade, ele completou. “Eu agradeço por ter recebido, no decorrer dessa longa vida, quase tudo que eu não merecia”.
Apaixonado pela Física, Israel Vargas fez parte de uma geração formada no pós – Segunda Grande Guerra, composta por discípulos dos físicos Gleb Wataghin e Giuseppe Ochialini. Eles fundaram a física brasileira nos anos 1930, na USP, dando origem a um grupo formado por Mário Schenberg, Marcelo Damy de Souza Santos, Abrahão de Moraes, Leite Lopes. Todos encantados com a descoberta do potencial da área nuclear.
“A área de atração para quase toda a minha geração foi a da física nuclear e da energia nuclear. Era a maior conquista técnico-científica durante e logo após a Segunda Guerra mundial”, diz o cientista, que rapidamente compreendeu a perspectiva que a energia nuclear abriria à economia mundial e à ciência.
Sempre com uma postura visionária, Vargas uniu, com talento de poucos, a ciência com a formulação de política científica, e não política partidária. Ele participou da formulação de política científica, na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), no começo dos anos 1960. Na Comissão, ele teve a oportunidade de formular a Lei que dispunha sobre a Política Nacional de Energia Nuclear.
Ditadura militar golpeia a vivacidade do cientista
Apesar de todo o bom humor e a vivacidade, o golpe militar, em 1964, abalou o cientista, que, com um passado de militância em órgãos estudantis, foi inserido na lista dos subversivos pelos militares. A biografia revela que soldados do exército ocuparam seu laboratório, no subsolo da Faculdade de Filosofia, localizado na rua Carangola, e o intimaram a depor. Ele foi submetido a dois inquéritos policiais militares (IPMs), um da Universidade e outro da CNEN. Durante um longo período, ele teve dificuldades em exercer trabalhos que exigiam participação em reuniões internacionais, porque os militares dificultaram sua saída do país.
“Negaram-me passaporte e vistos de saída para participar de reuniões no exterior, finalmente expedidos após intervenções enérgicas do CNPq”, lembra Vargas.
A ditadura militar foi um período difícil para Vargas e para todos os cientistas brasileiros ligados à área de energia nuclear, que, nesta época, havia alcançado uma expansão. O golpe matou um ciclo. A biografia mostra como o laboratório do Instituto de Pesquisas Radioativas (IPR, atual CDTN), onde Vargas realizava suas pesquisas sob a direção de Francisco Magalhães Gomes, foi ocupado pelo Exército. A Comissão Nacional de Energia Nuclear também sofreu intervenção, todas as atividades foram suspensas e os membros exonerados.
“Damy foi exonerado e todos aqueles que, como eu, defendiam o desenvolvimento autônomo da energia nuclear, apesar de termos mandatos ainda a cumprir”, lembra o cientista.
Desanimado diante da situação política do país, em 1964, Vargas recebeu convites para trabalhar na Argentina, nos Estados Unidos, na Holanda e na França. “Decidi pelo convite da França, primeiramente porque o autor do convite foi Pierre Balligand, velho amigo da Agência Internacional de Energia Atômica, na qual fora diretor da Divisão de Reatores de Potência, antes de tornar-se- se diretor do Centro de Estudos Nucleares de Grenoble, meu destino final. Ele era, de fato, vice-diretor do centro, cujo diretor era Louis Néel, Prêmio Nobel de Física em 1970”.
Em território francês, em quase sete anos no Centro de Estudos Nucleares de Grenoble, Vargas começou a ter contato com uma abordagem única no relacionamento entre a ciência dita básica e as aplicações. A partir desta experiência, o cientista desenvolveu, na volta para o Brasil, a premissa de que “a ciência e a tecnologia devem, primeiro, ser harmônicas com o meio ambiente; segundo, instrumento de recuperação, controle e fiscalização ambiental”.
No período em que viveu em Grenoble, Vargas expandiu sua atuação internacional. Em 1979 houve a Primeira Conferência Internacional sobre Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento, em Viena, e Vargas foi o subchefe da delegação brasileira. Na ocasião, era secretário de Tecnologia Industrial do Ministério de Indústria e Comércio, membro do CNPq e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências.
Nessa Conferência, ele adquiriu grande notoriedade. Foi para a Unesco, como membro do Conselho Executivo, depois presidente do Conselho Executivo, e ainda Embaixador do Brasil junto à organização. Participou, paralelamente, de inúmeros órgãos e fóruns internacionais, como a Comissão para a Restauração da Biblioteca de Alexandria.
Ao retornar da França, Vargas aceitou o convite do governador mineiro Aureliano Chaves para integrar a administração estadual, onde criou a Secretaria da Ciência e Tecnologia. Entre 1977 e 1979, ele foi secretário de Ciência e Tecnologia de Minas Gerais e pode desenvolver a ideia de que, se é a ciência e tecnologia que agridem o meio ambiente, somente a ciência e tecnologia podem resolver o problema do meio ambiente. Esta concepção também foi a fonte inspiradora da Comissão de Política Ambiental (Copam), uma inovação da política ambiental mineira da segunda metade dos anos 1970.
A competência no cenário político o levou à indicação para ocupar o Ministério da Ciência e Tecnologia, entre 1992 e 1998. Neste período, ele teve grande influência na expansão e na consolidação da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), além de ter trabalhado para aprimorar a qualidade da produção nacional, aperfeiçoando o sistema Nacional de Propriedade Intelectual e a Metrologia e a Normatização.
“Sou acusado de ser um dos responsáveis pela nova Lei de Patentes e considero que foi uma vitória formidável”, afirmou na época em que estava à frente do Ministério de Ciência e Tecnologia.
Embaixador da cultura
Mas as contribuições de Vargas não se restringem ao cenário de Ciência e Tecnologia, graças à sua versatilidade intelectual, apontada por diversos amigos de Vargas como uma marca do cientista. Na Unesco, foi membro da Comissão Assessora para as Políticas de Cooperação Intelectual Internacional, ao lado de expoentes do cenário cultural como George E. Palade, Lamek K. Goma, Mohammed Fathala El-Khatib, Wei Zhang, Umberto Eco e Gabriel Garcia Marques. Como embaixador do Brasil junto à Unesco, dedicou atenção particular à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Foi membro do Conselho do de Instituto de Estudos Avançados da Universidade das Nações Unidas, onde ajudou a desenvolver um projeto para a pesquisa de uma linguagem entre computadores que permitisse a tradução automática de línguas. Segundo a biografia, esse projeto assumiu tanta importância que foi criada, em Genebra, uma fundação para a promoção das línguas, com o nome de Sistemas das Nações Unidas para Promoção das Línguas – United Nations University for Development of Languages, (UNDL).
Ainda na área cultural, ele participou da Fundação Lampadia e de seu ramo brasileiro, a Fundação VITAE, onde assumiu o Conselho Diretivo em 1996 e desempenhou relevantes serviços para a promoção social da educação e cultura brasileiras até 2005.
(Suzana Liskauskas/ Jornal da Ciência)
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