terça-feira, 30 de setembro de 2014, Jornal da Ciencia
“Associar a investigação científica às questões sociais foi uma marca na vida de Luiz Hildebrando”
Em um clima de emoção, cientistas e amigos de Luiz Hildebrando Pereira da Silva – falecido na última quarta-feira (24) – se reuniram na noite de sexta-feira, 26, para fazer uma despedida do pesquisador reconhecido mundialmente pela sua atuação na medicina tropical e que sempre defendeu “o valor social da ciência”.
Organizada pelo presidente da Fundação Zerbini-Incor, Erney Camargo, coordenador científico da Fundação Conrado Wessel, a cerimônia reuniu cerca de 60 pessoas. Estiveram presentes personalidades como Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, e o diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Carlos Henrique de Brito Cruz.
Realizada em uma sala de reunião do prédio de um amigo de Hildebrando, no Itaim Bibi, região nobre de São Paulo, a homenagem de despedida ocorreu após o processo de cremação do corpo do cientista que faleceu em decorrência de falência múltiplas dos órgãos. Com 86 anos, Hildebrando, um dos maiores pesquisadores mundiais da malária, estava internado na Unidade de Tratamento Intensivo do Instituto do Coração em São Paulo desde o dia 8 de setembro para tratamento de pneumonia.
Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em 1953, Hildebrando tinha como linhas de pesquisa a imunologia da malária falciparum, patologia e epidemiologia da malária, etiologia das diarreias infantis, etiologia viral dos processos infecciosos agudos e genética molecular da lisogenia do bacteriófago lambda.
Emocionado ao falar do amigo, Erney Camargo disse que a morte de Luiz Hildebrando deixa um vazio na Ciência. “A perda de Luiz é irreparável e insubstituível”, disse ele, também professor emérito do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e professor emérito da Faculdade de Medicina da mesma universidade.
Memória
Segundo Erney Camargo, o encontro na última sexta-feira foi uma pequena reunião com amigos e familiares de Luiz Hildebrando para prestar homenagem à memória do cientista. “Foram reunidos amigos que pensaram junto com ele, como o FHC (Fernando Henrique Cardoso)”.
Com 79 anos, Erney Camargo começou a trabalhar com Luiz Hildebrando ainda na Faculdade de Medicina da USP, na década de 1950, quando era aluno do mestre da ciência. “Nosso primeiro trabalho foi sobre toxoplasmose e doenças de chagas”, disse Erney Camargo que após formado foi trabalhar no departamento de medicina da USP.
Conforme relata Camargo, Luiz Hildebrando foi o penúltimo discípulo do professor Samuel Pessoa (médico parasitologista – 1898/1976). Samuel acreditava na possibilidade de se fazer Ciência “com ótima qualidade” voltada aos problemas de saúde da população brasileira – doenças que vão da área de parasitologia a doenças endêmicas parasitárias, particularmente malária, amarelão, leishmaniose e doenças de chagas.
“Isso envolvia uma grande participação social dos problemas sociais e econômicos da população, o que casava muito bem com nossa visão política. Pois éramos todos de esquerda”, disse, ao recordar que Samuel foi candidato a deputado do partido comunista.
“Luiz Hildebrando era o discípulo direto de Samuel, teve a oportunidade de acompanhar Samuel pelo interior do País, particularmente no Nordeste. E Eu fui o discípulo caçula de Samuel”, recorda.
Separados pelo golpe militar
Após o golpe militar, Luiz Hildebrando foi para França e Erney Camargo para os Estados Unidos e outros membros do grupo também foram para o exterior. Alguns nem voltaram ao Brasil, após os anos de chumbo.
Luiz Hildebrando fez carreira no Instituto Pasteur, onde se aposentou. Quando voltou ao Brasil foi trabalhar na USP com Erney Camargo.
“Começamos um projeto conjunto sobre a malária em Rondônia, região com maior incidência de malária naquela época. O governo militar havia promovido grande migração para Rondônia a fim de colonizar a região. Foi uma iniciativa muito importante, mas não tomaram o cuidado necessário e houve uma explosão de malária em Rondônia”, disse.
Tal parceria deu origem ao Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais de Rondônia (Ipepatro), onde Luiz Hildebrando exercia o cargo de diretor presidente.
“Eu e o Luiz resolvemos montar um instituto para estudar exatamente a malária de Rondônia que tinha características muito especiais – explosiva e incontrolável.”
Assim, os dois especialistas ficaram com um pé em São Paulo e outro em Rondônia por algum tempo, até o momento em que Luiz Hildebrando decidiu ficar definitivamente na Rondônia.
Além de assumir o comando do Ipepatro, Luiz Hildebrando formou capital humano, sempre seguindo o legado de Samuel, de associar a investigação científica às questões sociais. “E nisso Luiz Hildebrando foi até o fim”, destaca Erney Camargo.
Disseminação do conhecimento
Discípulo de Luiz Hildebrando, Rodrigo Stabeli (38 anos), vice-presidente de pesquisa e laboratórios de referência da Fiocruz, faz questão de frisar que Luiz Hildebrando começou a trabalhar no Instituto Pasteur como epidemiologista e lá obteve conhecimento sobre a biologia molecular através do trabalho de François Jacob (falecido no ano passado), ganhador do prêmio Nobel de Medicina de 1965, para quem a biologia molecular pode ser utilizada também como possível controlador da malária.
Ao voltar ao Brasil, recorda Stabeli, Luiz Hildebrando não queria se tornar um “avô razinza” para cuidar de netos. Nesse caso, entendia que o conhecimento adquirido no Instituto Pasteur teria que ser disseminado para lugares necessitados. Foi assim que tomou a decisão de ir para Rondônia, onde podia desenvolver um ambiente capaz de promover “o valor social na ciência”.
“Ele entendia que não era importante ficar contemplando um bonito trabalho publicado numa grande revista se o trabalho não tivesse um fator de agregação de valores para a população para qual a pesquisa estava direcionada.”
“O professor Hildebrando acreditava no poder de transformação que as pessoas podem fazer em todas as dimensões. Seja num paper publicado ou, na mais simples das funções. Acreditava no trabalho bem feito. Acreditava que o trabalho profissional vem do coração. Esse é o grande legado que fica do Luiz, o Prof Hildebrando, para mim.”
Desenvolvimento científico regional
O desenvolvimento científico regional é uma das marcas de Luiz Hildebrando. Para o diretor Ricardo Godoi da Fiocruz de Rondônia, a contribuição de Luiz Hildebrando na ciência regional é extensa, vai da investigação científica para malária à manutenção do controle da epidemia.
“A morte de Luiz Hildebrando é uma perda para ciência brasileira, ele era um grande humanista, tinha facilidade de articular e aglutinar pessoas das mais diversas disciplinas científicas em torno de um projeto de pesquisa, em torno de benefícios para sociedade.”
Segundo ele, há um desenvolvimento regional atrelado ao trabalho de Luiz Hildrebrando na região. “Os processos começaram desde a verificação da importância da manutenção (do controle) da epidemia que hoje está culminando para projetos de pesquisa, nas populações afetadas pela malária, para um tratamento específico para prevenção da enfermidade.”
Segundo Godoi, Luiz Hildebrando identificou a importância de portadores assintomáticos de malária na região e a partir da verificação da importância desses pacientes foram estudadas novas estratégias de controle para diagnosticar e tratar as pessoas.
Outra contribuição significativa de Luiz Hildebrando em Rondônia, segundo Godoi, é a formação de alunos de pós-graduação e na parceria com a Universidade Federal de Rondônia criando programas de mestrado e doutorado.
(Jornal da Ciência)