6 de novembro de 2016

Bernardete Gatti: "Nossas faculdades não sabem formar professores"


A professora Bernardete Gatti, de 74 anos, interessou-se por formação de professores na década de 1960, quando ninguém no país falava no assunto. Saiu pelo mundo em busca do conhecimento que ainda não existia aqui. Fez seu doutorado na Universidade de Paris, seguiu para o Canadá, para um pós-doutorado na Universidade de Montreal, e para os Estados Unidos, para outro pós-doutorado na área, desta vez na Universidade da Pensilvânia. Deu aulas de psicologia da educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Hoje, coordena as pesquisas da Fundação Carlos Chagas. Defende, sobretudo, que nenhuma formação de professores pode ser eficaz sem ênfase nas práticas de como ensinar – algo que não ocorre nas faculdades. Bernardete é a favor da criação de um exame nacional para professores, do aumento de salário, como peça-chave para mudar o perfil dos candidatos à profissão, e de avaliações constantes de professores, atreladas à remuneração.

ÉPOCA – O que falta na formação para professor?
Bernardete Gatti – 
O problema da formação de professores começa na faculdade. Os docentes de pedagogia e das licenciaturas – de matemática, língua portuguesa, biologia etc. – não sabem ensinar para quem dará aula. Isso porque eles mesmos não aprenderam como fazer isso. Para não dizer que a formação didática não existe, podemos dizer que ela é precária. A maioria dos futuros professores não aprende como lecionar. Não recebem na faculdade as ferramentas que possibilitarão que eles planejem da melhor forma possível como ensinar ciências, matemática, física, química e mesmo como alfabetizar. Muitos de nossos professores saem da faculdade sem saber alfabetizar crianças. É um problema grave.
ÉPOCA – Muito já se discutiu sobre como melhorar essa formação. Por que esses cursos não mudam?
Bernardete – 
A gente constata em entrevistas e em pesquisas com docentes das faculdades que eles não têm a noção de que estão formando um profissional da Educação, que vai para a sala de aula lidar com crianças e adolescentes. Eles trabalham para formar intelectuais e pesquisadores. Até certo ponto isso é importante. Mas essa é apenas parte da formação. É preciso focar também na prática social nas escolas. Dizer para os acadêmicos que eles têm de formar professores para a sala de aula chega a escandalizá-los. Muitos encaram essa questão como algo menor. Essa mentalidade vem de longe, lá dos séculos XVI, XVII. E até hoje prevalece. 
ÉPOCA – Quais são os exemplos que podem nos inspirar?
Bernardete –
 Há iniciativas bastante interessantes na Austrália, em alguns locais nos Estados Unidos, na França, na Bélgica e na Itália. Essas iniciativas têm em comum o fato de preservar a vivência em sala de aula do professor universitário. Aquele docente que formará o professor trabalha em pesquisa, dá aula na universidade, mas não perde o vínculo com o que ocorre na educação básica. Isso é importante porque, à medida que as coisas mudam – e tudo muda sempre –, o conhecimento muda e as relações educacionais também. As novas gerações trazem culturas diversificadas. Quem formará os professores tem de frequentar a educação básica para acompanhar esse movimento e manter-se em sintonia com as vivências escolares.
ÉPOCA – Os cursos de pedagogia e de licenciatura proliferam nas instituições de ensino superior. Os problemas mudam de acordo com o tipo de faculdade?
Bernardete –
 A maioria dos professores hoje é formada por instituições de natureza privada (80% deles). Em muitas delas, os cursos são encurtados  e, de certa maneira, aligeirados. Esse encurtamento não é permitido por lei. Ele ocorre porque as aulas podem ser substituídas por seminários culturais e atividades programadas. O problema é que esses eventos não são desenvolvidos a contento. Grande parte da formação é feita à distância. O aluno que passa por esse tipo de faculdade sai com precárias condições de entrar numa sala de aula. É despreparado, especialmente, para trabalhar com alfabetização. Por isso, vemos esses resultados de alfabetização problemáticos no país (13 milhões de pessoas não sabem ler e escrever. Uma em cada cinco crianças de 8 anos não lê).
ÉPOCA – Um professor precisa passar por um estágio obrigatório de 400 horas. Esse período é suficiente para dar a experiência de sala de que os professores precisam?
Bernardete –
 A questão principal é que essas 400 horas não são cumpridas como deveriam. A pesquisa de campo mostra continuamente que esses estágios são feitos a toque de caixa. Não há controle algum se as horas foram cumpridas, se o estudante estagiou mesmo ou se simplesmente a declaração de que ele estagiou foi assinada por alguma instituição que nunca o teve em sala de aula. As faculdades não providenciam convênios com escolas ou redes para fazer um projeto de trabalho dos estagiários junto aos professores da rede. Um complicador é que  60% dos cursos de pedagogia são feitos à distância. Nesse modelo, o estudante perde muito da relação com as crianças. Sem um programa de estágio estruturado, esse déficit na formação só aumenta.
ÉPOCA – Em carreiras como Direito e medicina, o aluno que conclui a faculdade tem de fazer um teste rigoroso que mostre que ele aprendeu o que precisa. Isso poderia ser aplicado também aos candidatos a professor?
Bernardete –
 Seria factível tanto para a pedagogia quanto para as licenciaturas ter um exame nacional para professores. Isso foi ensaiado na fase em que Fernando Haddad foi ministro da Educação (2005 a 2012), tanto que os pressupostos de um exame dessa natureza estão prontos lá no Inep (órgão do governo responsável pelas avaliações de Educação do país). Mas não foi adiante porque há muita resistência e interferência política em relação a isso. Não sei se essa seria uma solução. Mas um exame nacional como o da OAB seria  um indicador do nível de formação de nossos professores.
"Um exame nacional para professores como o da OAB seria um indicador do nível de formação de nossos profissionais
ÉPOCA – É possível sanar o déficit de formação que os milhares de professores em serviço carregam?
Bernardete –
 Com esforço muito grande. Os alunos saem da faculdade para a sala de aula com uma formação tão precária que os esforços de especialização são punidos. O problema é que temos uma distorção. Como as faculdades são muito ruins, o que deveria ser uma especialização vira uma formação básica dada quando o professor já tem alunos em sala. A formação continuada deveria ser um aprimoramento, uma forma de enriquecer as aulas que ele já deveria saber conduzir. Isso não acontece. Então, bancamos cursos para formar alfabetizadores, cursos para dar iniciação em matemática, cursos para professores de ciências. Estados e municípios não têm condições de programar e de controlar o que é feito nessas formações continuadas, e os resultados educacionais continuam sendo bastante precários apesar de todo o dinheiro investido – que não é pouco.
ÉPOCA – O que tornaria essa carreira mais atraente?
Bernardete – 
Olha, muita gente já disse que maior remuneração não faz tanta diferença, mas eu sou contra. Para mim, remuneração é chave. Aumentar os salários é fundamental para valorizar a profissão, para trazer gente mais bem preparada para a sala de aula e para fazer os que já estão nela correr atrás de melhorar. Ninguém escolhe uma carreira só por ideologia. Você olha o que será seu futuro profissional. E a carreira do professor, em geral, não delineia um futuro muito bom. Ela cria uma armadilha. Para o professor avançar em termos de salário, ele é obrigado a deixar de ser professor para ser coordenador ou ser diretor. Tem de abandonar a sala. Isso ocorre justamente quando ele já tem experiência em dar aula. Acho que a carreira tem de dar incentivos para que ele se mantenha na sala. 
ÉPOCA – Qual sua opinião sobre a estabilidade? Ela compromete a qualidade?
Bernardete –
 Essa é uma discussão complexa. A vantagem da estabilidade é que se pode investir bastante no professor porque ele ficará na rede. Ela prejudica o desenvolvimento do profissional porque pode gerar muita acomodação. Agora, repito, num país como o nosso, a estabilidade é uma questão complexa, que tem de ser discutida em profundidade. Não dá para dizer: “Sou contra ou sou a favor e pronto”. Uma ação eficaz para garantir a estabilidade sem comprometer a qualidade é acompanhar com rigor o estágio probatório de três anos (até então o professor não tem estabilidade) e estabelecer pontos de passagem na carreira atrelados a aperfeiçoamento, aumento de qualidade da aula e remuneração.

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