O Globo, 24/3/2013
Quem acompanhou a missa de iniciação do pontificado do Papa Francisco pela rede americana CNN, no domingo passado, foi surpreendido por uma chamada de notícia urgente proveniente de Steubenville.
Steubenville? Até sete meses atrás só mesmo os 18,5 mil habitantes dessa adormecida cidade às margens do Rio Ohio conseguiriam situá-la no mapa do Centro-Oeste dos Estados Unidos.
Desde um sábado de agosto de 2012, porém, tudo mudou — desde que uma jovem de 16 anos, inerte e inconsciente de embriaguez, foi submetida a abusos sexuais e humilhações por colegiais da escola local, durante seis horas de uma noitada de baladas na cidade.
Um vídeo de 12 minutos, fotos e tweets em tempo real, todos posteriormente deletados da internet, chegaram a ilustrar algumas cenas.
Inicialmente abafado pelas famílias, pela escola e pelas autoridades locais, o caso acabou encontrando eco em redes sociais, virou denúncia para os ciberativistas da Anonymous e entrou na pauta da grande imprensa americana.
Quando o juiz da Corte da Juventude anunciou a sentença dos dois primeiros acusados, em pleno domingo de Papa novo, as principais redes de televisão do país tinham equipes a postos em Steubenville.
“Minha vida acabou. Ninguém mais vai me querer”, disse o réu de 16 anos entre soluços, ao ouvir a sentença. Referia-se à sua carreira de ídolo da equipe estadual de futebol americano. Seu parceiro de fama no time e de infâmia no estupro também debulhou-se em choro. Era só um pouco mais velho — 17 anos.
O primeiro recebeu pena mínima de um ano, a ser cumprida em centro de detenção para menores. O segundo, pena de dois anos ou mais, pelo agravante de ter postado fotos da vitimização na internet.
Dependendo do comportamento de cada um, poderão ficar presos até completarem 21 anos. E caberá ao juiz, no momento de soltura, decidir se seus nomes constarão ou não do temido registro nacional de pessoas condenadas por estupro.
Nos Estados Unidos, esse registro, por lei, é de acesso público. De acordo com alguns critérios, o nome de um condenado por crime sexual no passado pode ser retirado do registro após determinado número de anos. Ou nele permanecer para sempre.
“Não acho certo que alguém, aos 75 anos de idade, deva ter de se explicar por algo que fez quando tinha 16. A evidência científica atesta que o cérebro humano, nessa idade, ainda não está plenamente desenvolvido”, rebateu de imediato o advogado de um dos condenados. Estava no seu papel de defensor do réu.
“Nunca cobri algo emocionalmente tão penoso”, informou ao vivo a repórter da CNN, fora do figurino de jornalista. “Foi muito difícil presenciar o que aconteceu com esses dois jovens de futuro tão promissor, que tinham tudo para serem estrelas do esporte, eram bons alunos e viram suas vidas desmoronarem à sua frente.”
O foco centrado apenas no futuro dos dois atletas, como se o episódio fosse uma terrível trapaça do destino, e o tom de pesar geraram caudalosa indignação contra a emissora, que desde então tenta consertar o viés da cobertura.
À parte o fato de que há uma única vítima no caso — a jovem que acordou nua no porão de uma das casas de Steubenville, rodeada por três garotos e sem saber que fora exposta a milhares de internautas —, o futuro dos dois réus condenados tem, sim, relevância. Mas não pelos motivos arrolados por seus defensores.
O cumprimento da pena a que foram condenados — numa casa de detenção para jovens e não numa prisão comum para adultos, como permitiria a lei — já levou em conta a neurociência. Como, de resto, a própria Suprema Corte dos Estados Unidos, que desde 2005 aboliu a pena de morte para menores de 18 anos após receber a opinião de um painel de cientistas médicos.
Segundo o painel, “seria equivocado equiparar os erros cometidos por um menor com os de um adulto devido a uma maior possibilidade de suas deficiências de caráter sofrerem uma alteração”.
No julgamento de Steubenville, um professor da Universidade da Pensilvânia, Ruben Gur, também assegurou que o lóbulo frontal do cérebro, responsável pelo controle do comportamento impulsivo, “só começa a maturar a partir dos 17 anos de idade. A área do cérebro avaliada pelo sistema legal é justamente a que se desenvolve mais tarde”.
Convém, contudo, deixar a ciência de lado e focar na questão moral do episódio. Naquela noite em Steubenville, assim como em qualquer lugar do mundo onde uma mulher é estuprada, os perpetradores sabiam estar cometendo uma violência sem reparo.
E se, aos 16 e 17 anos, não sabiam, é mais grave ainda, por apontar para uma cultura vigente na cidade, leniente em casa, conivente no time campeão. Ao longo dos próximos meses, quando serão ouvidos outros possíveis envolvidos no acobertamento do caso, se conhecerá a extensão das responsabilidades.
Quanto aos dois garotões condenados, as estatísticas lhes são favoráveis. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Justiça americano, apenas 3% dos menores condenados por crimes sexuais são reincidentes, contra 40% de reincidentes no universo de condenados adultos.
Isso significa que, uma vez cumprida a pena, os dois jovens de hoje ainda podem se tornar cidadãos produtivos amanhã. Se a sociedade conseguir lhes ensinar algo, podem se tornar homens para que, a seu turno, possam ensinar seus filhos a serem adolescentes sem culpa.
Já o futuro da jovem é mais difícil de prever. Sua vida pode ser uma eterna prisão interior.
Em tempo: Estudantes do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais pintam uma caloura de preto, penduram-lhe uma placa de papelão no pescoço com os dizeres “Chica da Silva”, acorrentam-na pelas mãos e a puxam campus afora. A cultura da humilhação revestida de farra tem gradações.
Dorrit Harazim é jornalista
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