2 de janeiro de 2011

O governo Dilma conseguirá erradicar a pobreza no Brasil?

São Paulo, sábado, 01 de janeiro de 2011


Osso muito duro de roer

A pobreza não será erradicada em poucos
anos, por pior que seja definida mediante
ínfimas
"linhas"
ou
"patamares"
de
insuficiência de renda monetária. Como se faz
nos Estados Unidos, onde o número de pobres
tem oscilado entre 13% e 17% da população.
Ao longo de um decênio, 40% das pessoas
caem, em algum momento, abaixo da linha de
pobreza. Mais: 58,5% serão pobres por ao
menos um ano entre seus 25 e 75 anos.

Na Europa, prefere-se uma abordagem mais
flexível: pobre é quem ganha menos de 60% da
renda mediana nacional. (Atenção, "mediana",
e não "média", como andam sugerindo por
aqui). Apesar de melhor, não passa de outra
versão da mesmíssima crença: de que para
delimitar a pobreza basta que se convencione
o valor da renda monetária divisória.

Todavia, como pobreza é privação de
capacidades básicas, jamais deveria ser
medida
apenas
com
estatísticas
de
insuficiência de renda.

É pobre mesmo quem tiver boa renda
monetária caso esteja impedido de convertê-
la em vida decente. Por falta de saúde, de
educação e de muitas outras carências.

Essa afirmação resulta de imensa quantidade
de minuciosas pesquisas feitas por equipes de
primeira linha junto às populações mais
desvalidas do mundo. Foram sintetizadas no
livro Desenvolvimento como liberdade, do
prêmio Nobel Amartya Sen (Companhia de
Letras, 2000). Principalmente no quarto
capítulo, intitulado "Pobreza como privação de
capacidades".

É leitura recomendável a quem acredite que
só menos de um terço da população brasileira
continue pobre porque em 2008 já não
passavam de 28,8% os condenados a se virar
com menos de meio salário mínimo. Basta
outro dado bem objetivo para perceber que
mais de metade da população permanece
pobre: o acesso à rede de esgotamento
sanitário. Não usufruem desse direito básico
56% da população total do país.

Falta de esgoto impacta a inteligência das
pessoas por causa de infecções parasitárias na
infância. Evidência consolidada por Cristopher
Epping e colaboradores no periódico científico
"Proceedings of the Royal Society" e relatada
nesta Folha pelo médico Drauzio Varella em
sua coluna de 11/09/2010 ("Inteligência e
pobreza").

O cérebro é o órgão do corpo humano que
mais consome energia: 87% no recém-nascido,
44% aos cinco anos, 34% aos dez. As infecções

parasitárias desviam energia para ativar o
sistema imunológico. Repetidas diarreias até
os cinco anos roubam do cérebro as calorias
necessárias
a
seu
desenvolvimento,
comprometendo a inteligência para sempre.

É pura ilusão, portanto, supor que não sejam
pobres
pessoas
que
padeçam
dessa
catastrófica privação que é o permanente
risco de contrair parasitoses, só porque
tenham renda superior a "x" reais. Chega a
soar como propaganda enganosa o uso desse
tosco expediente para dizer que a pobreza
está sendo erradicada. Esconde a inépcia dos
governos em garantir saneamento.

O número de moradias insalubres diminuiu dez
pontos entre 1995 e 2002 (de 59,1% para
49,5%), e mais cinco entre 2003 e 2008 (de
48,3% para 43%). Mantidos tais níveis de
desempenho, a universalização do esgoto com
tratamento só ocorreria em 2060. Se o
investimento dobrasse e a produtividade
aumentasse um terço, essa meta poderia ser
atingida em 2024. Com razoável aumento do
quociente de inteligência (QI) médio,
chamado de "efeito Flynn".

Em suma: seriam necessários quatro governos
bem melhores que os de Lula para que a
pobreza fosse minimizada.

JOSÉ ELI DA VEIGA, 62, é professor titular de economia da USP.
Site: www.zeeli.pro.br.

Estratégia para o fim da miséria

A erradicação da miséria foi anunciada por Dilma Rousseff como prioridade
social do seu governo. O problema atinge ainda milhões de brasileiros e
apresenta as mais variadas faces.

Famílias rurais sem condições produtivas, populações de rua nas grandes cidades,
povos indígenas que perderam as terras, quilombolas carentes de serviços
essenciais, idosos desassistidos, essas são apenas algumas das muitas caras da
pobreza extrema.

O fim da miséria exige respostas às diferentes formas do problema.

A tarefa é difícil, mas possível. Para isso, o governo que começa hoje deve
orientar a sua atuação por três eixos estratégicos: uma política clara e com
recursos suficientes, a gestão articulada dessas ações e a participação da
sociedade para garantir a aplicação das medidas.

Nos dois mandatos do presidente Lula, a principal ação nessa área foi o Bolsa
Família. O programa atacou o que é comum às distintas formas de pobreza, a
insuficiência de renda, e retirou quase 10 milhões de pessoas dessa condição.
Porém, para os cerca de 8 milhões restantes, a faixa mais pobre dos mais pobres,
vai ser preciso mais.

É indiscutível que será a educação universal de qualidade que romperá o ciclo
intergeracional da pobreza, mas tal resultado só virá a longo prazo e se o Estado
garantir agora as condições para isso. Assim, o Bolsa Família deve continuar e
incorporar os que nele não ingressaram, e o valor transferido deve ser corrigido.
A atual média de R$ 95 mensais por família está aquém do necessário para os
que não possuem outra renda estável.

O aprofundamento de outras iniciativas é indispensável. Habitação, saneamento
básico, maior oferta e barateamento de transporte, o acesso à energia elétrica e
iniciativas de inclusão produtiva são alguns dos itens de uma cesta básica para o
resgate da miséria.

Ainda assim, não basta somar ações. Será decisiva a capacidade de potencializar
os impactos dos programas, articulá-los numa perspectiva intersetorial, colocá-
los um a serviço do outro.

Uma câmara social ativa, com ministros e secretários, sob a coordenação da
Presidência da República, é crucial para a convergência e a otimização das
iniciativas. Com os programas certos e integrados, falta o maior desafio: a
disposição e a capacidade dos atores locais para aplicar as políticas nos
territórios, e o acompanhamento público necessário para isso.

O governo não pode mobilizar a sociedade, mas deve abrir os espaços públicos à
participação.

Investimento, gestão e participação social formam o tripé para a erradicação da
miséria, para um processo inédito de constituição de cidadania no Brasil,
cidadania que só existe de fato quando é para todos.

FRANCISCO MENEZES é diretor do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, ONG
fundada por Betinho). Foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

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