30 de setembro de 2016

MP do Ensino Médio pode ter efeitos contrários aos pretendidos, dizem especialistas




Há um consenso entre especialistas, pesquisadores, estudantes, professores, gestores públicos e movimentos sociais sobre o Ensino Médio: o reconhecimento de que esta etapa escolar – essencialmente propedêutica, conteudista e pouco dialógica com a realidade dos estudantes – necessita de mudanças.


Prova disso são algumas iniciativas do próprio governo federal, como o Programa Ensino Médio Inovador ProEMI, instituído em 2009, que tinha como pauta promover a inovação curricular, ampliar o tempo dos alunos nas escolas e promover uma formação integral. Outra medida foi o Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, de 2013, que representava a articulação entre União, estados e municípios também prevendo elevar a qualidade na etapa.
MP nº 746
Institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e a Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, e dá outras providências.
Na semana passada, um novo capítulo foi inaugurado. A reforma esperada para o período final da Educação Básica veio por meio da Medida Provisória (MP) nº 746, de 22 de setembro de 2016, que institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.
Avanço questionável
Dentre as críticas ao projeto está justamente o fato dele vir em forma de MP, um instrumento com força de lei adotado pelo presidente da República em casos de relevância e urgência, o que evidenciou a falta de um debate com a sociedade.
O ministro da Educação, Mendonça Filho, alegou que a MP foi resultado de um quase consenso, com o apoio de praticamente todos os secretários estaduais, como declarou à reportagem da Folha de S. Paulo. Mendonça também colocou que a medida torna-se necessária porque a atual proposta que tramita na Câmara dos Deputados – Projeto de Lei nº 6840/2013, do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) – não avança na tramitação desde 2013. A explicação, no entanto, não convenceu setores da sociedade civil que se dedicam a pensar o tema.
Procurado pelo Centro de Referências em Educação Integral, o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) colocou que o PL 6840 é fruto de uma intensa discussão com as representações educacionais, iniciada em 2012. E que, após a sua aprovação em 2014, foi proposto um texto substitutivo, sob o acordo de que ele voltaria para ser debatido, o que aconteceu em 2015 e ao longo deste ano. No momento, o deputado estava preparando substitutivo global para então levá-lo a plenário. “Eu repudio a forma como a reforma foi apresentada por desconsiderar três anos e meio de trabalho com a sociedade. Estávamos construindo as convergências necessárias para a reforma”, declarou.
Daniel Cara, coordenador-geral daCampanha Nacional pelo Direito à Educação fala em “antirreforma” por entender que, por princípio, toda mudança dessa natureza precisa ser discutida. Organizações como o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e aAssociação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) também criticaram a medida por meio de nota oficial.
“O uso de uma MP para tratar de uma temática importante no âmbito educacional emite o claro sinal de que se trata de um governo avesso ao diálogo. O uso de MP apesar de ser previsto na lei deve ser excepcional. A que interesses obscuros serve uma reforma feita de maneira autoritária e que atropela processos de discussão em curso na Câmara dos Deputados?” questiona a Anped.
A inquietação também é compartilhada por Natacha Costa, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz. “Parece evidente que não se transforma a cultura institucional dos sistemas por decreto. Assim, uma ideia com potencial de mobilizar a transformação desta importante etapa, corre sérios riscos de cair em descrédito, de agravar as tensões nesse campo e de nos fazer retroceder ainda mais”, pontuou.
Base das mudanças
Para implementar a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, a medida altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº9394, de 20 de dezembro de 1996) e a Lei que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Lei nº 11.494 de 20 de junho 2007).
No que tange à LDB (veja o documento alterado pela MP), as mudanças surgem no bojo da educação em tempo integral e da flexibilização escolar (na perspectiva de que os alunos tenham mais autonomia diante de seus percursos formativos).
Algumas implicações da MP
  • amplia a carga mínima anual para 1400 horas;
  • retira a obrigatoriedade do ensino de Educação Física e Artes no Ensino Médio;
  • retira a obrigatoriedade da Filosofia e da Sociologia;
  • inclui a formação técnica e profissional como componente curricular obrigatório;
  • reconhece a obrigatoriedade do ensino de língua portuguesa e matemática nos três anos do ensino médio.
Práticas pedagógicas
Anna Penido, diretora executiva do Inspirare, reconhece que a flexibilização é uma das demandas dos estudantes. Recentemente, o Porvir – um dos programas do instituto – lançou a pesquisa “Nossa Escola em (Re) construção: A escola que os jovens querem” que tomou como base a opinião de 132 mil jovens no país. “Eles dizem com todas as letras que querem ter a capacidade de escolher alguns conteúdos e disciplinas ao longo da jornada escolar. A questão é que para além dos componentes curriculares tradicionais, eles querem outros conteúdos, como preparação para relações humanas e sociais, políticas, direitos humanos e cidadania”, observa.
Em sua leitura, os percursos formativos têm como foco as disciplinas e a dimensão profissional. “Eu não consigo ver um parágrafo onde é dito que o Ensino Médio deve ter como proposta a educação integral, e isso me preocupa muito”, aponta.
Outra preocupação da especialista se relaciona com a implementação da proposta. “O MEC fala que cada escola vai fazer seu arranjo para oferecer o trajeto formativo. Agora, isso vai ser dado a partir da disponibilidade da escola ou do interesse do aluno? Se for a primeira opção, as chances do estudante ter os seus desejos contemplados diminui, então, é preciso pensar em como se organizam essas ofertas”, questiona Ana.
Ela ainda chama a atenção para a inviabilidade de se pensar percursos flexíveis com as mesmas práticas pedagógicas que são hoje aplicadas nas escolas. “Eu passo a ter mais tempo na escola, mas se terá mais tempo do mesmo? Além da flexibilização, os jovens querem práticas pedagógicas que dialoguem com eles, que os engaje, os entusiasme, como projetos, rodas de conversas, uso de tecnologia, entre outros recursos”, completa.
A especialista entende que os programas de educação integral têm que ter foco no protagonismo do aluno, trazer outros conteúdos para além dos tradicionais e alcançar práticas mais interativas. “É menos o tempo por si só e mais o que ele permite”, afirma.
Em nota, o Cenpec questiona a existência de ações específicas para sanar os déficits de aprendizagem dos estudantes que ingressam hoje no Ensino Médio de forma a prepará-los para escolher de forma qualificada as suas possibilidades de itinerários formativos e de projeto de futuro. “É preciso lembrar que as escolhas dos jovens são feitas conforme a sua condição social, ou seja, de acordo com as oportunidades que tiveram ao longo da sua vida”, relatou trecho da publicação.


Na leitura de Daniel Cara, o discurso da flexibilidade é apenas um chamariz para a medida provisória. A seu ver, há uma inflexibilidade colocada quando o estudante é obrigado a trilhar alguns itinerários a partir de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que sequer foi apresentada.
“Quando você observa que a profissionalização vai exigir exclusivamente aprendizado em Língua Portuguesa, Matemática e Língua Inglesa, retirando Educação Física e Artes, o ponto central é que se vai dividir a sociedade brasileira entre aqueles que vão ser tomadores de decisão e que vão optar por itinerários que não o da profissionalização, e os subordinados que vão pela profissionalização e não terão muitas chances de ingressar em uma boa universidade, de poder realizar de maneira plena sua vida. O Brasil volta a ser um país que não só reproduz, como alimenta a desigualdade na educação, mais do que acontece hoje”, condena Cara.
O pesquisador Carlos Artexes Simões também fez uma análise sobre as mudanças e fala em retrocesso quando olha para a formatação do currículo. Para o especialista, a LDB já se caracterizava pela grande flexibilidade e descentralização e a medida provisória, ao contrário do que alega, promove uma prescrição e centralismo federal com o engessamento do currículo do Ensino Médio.
Financiamento
Outro ponto preocupante e que tem sido menos debatido, na visão de Daniel Cara, é a questão do financiamento. Ele explica que, desde 2007, senadores e prefeitos disputavam os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) com base em balizas coerentes.
Com a MP, ele entende que o Ensino Médio passará a ser sobrefinanciado em relação à Educação Infantil e Ensino Fundamental, ou seja, o financiamento da etapa se dará em detrimento a todas as demais modalidades. “O resultado é que os prefeitos vão ter menos recursos para lidar com a expansão da Educação Infantil que hoje é principal demanda dos pais, até maior que no Ensino Médio”, avalia.
Cleuza Repulho, ex-presidente da Undime e especialista do Conviva Educação, é categórica ao dizer que não se resolve educação dividindo recursos. “É preciso ampliar a linha de financiamento; dividir só precariza o que já existe”.
Outra crítica recai sobre o fato de que a MP não apresentou a sua planilha de custos. “Os governos responsáveis não podem se eximir de apresentar as planilhas de custos de suas políticas, já tínhamos feito essa crítica ao governo Lula quando encaminhou oPlano Nacional de Educação (PNE) sem planilha de custos”, complementa o especialista.
Ainda para Cara, a MP reforça a linha do atual governo. “ O governo Dilma já escanteava o PNE, mas fazia com que a política, ainda que sem os recursos necessários, fosse uma medida referencial da ação do governo. Com a medida provisória, esse governo não só mantem o escanteamento do plano em termos de financiamento e gestão prática, como tenta substituí-lo por essas iniciativas. A medida não dialoga com o calendário do PNE, o que demonstra uma irresponsabilidade com o que está na Lei, uma falta de compromisso público com a gestão do estado brasileiro”, aponta.
Análise positiva
Para a subsecretária de Educação de Alagoas, Laura Souza, os dissensos em torno da medida provisória são fruto de problema de interpretação. Em entrevista cedida ao G1, a gestora colocou que ao organizar os conteúdos e os componentes curriculares de outra maneira, a reforma contribui para atribuir identidade às escolas, hoje muito padronizadas, além de permitir aos estudantes que estejam mais próximos de seus projetos de vida.
Ela também colocou que o teor da proposta representa um processo de construção, iniciado há pelo menos dois anos, com os técnicos que trabalham com o Ensino Médio nas Secretarias do Estado da Educação e que está de acordo com o que foi enviado pelo Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed) ao MEC.
“Acredito que a MP tinha o objetivo de fomentar o debate e acho que isso foi alcançado. A etapa da educação básica estava muito estagnada, sem políticas públicas, por isso enxergo esse processo de maneira muito positiva”, declarou. A gestora também negou que haja a retirada de disciplinas como Educação Física e Artes do Currículo.
Centro de Referências em Educação Integral procurou o MEC para se posicionar frente às críticas da medida provisória, mas não obteve respostas até o fechamento desta reportagem.

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