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Se você quer entender as linhas de força que movem a política no Brasil, assista à novela das 9. Programas de auditório também são bons: revelam as tensões do presente, as apreensões da audiência, as simpatias e as impaciências da nação. Os humorísticos são melhores: expõem um painel da popularidade dos governantes. Por meio deles, a gente fica sabendo quais autoridades ainda impõem respeito e quais já foram para o vinagre. Os comediantes não fazem piada de quem eles bem entendem, como se imagina. Quando debocham escancaradamente de alguém, sabem muito bem que esse personagem já não é levado assim tão a sério pela audiência. Os quadros de humor na TV servem de termômetro para a popularidade dos políticos na exata medida em que as piadas nos oferecem uma radiografia dos humores do país. O modo como os telespectadores riem de um presidente da República revela se gostam dele, se têm carinho por ele, se querem vê-lo pelas costas ou se querem jogá-lo no esquecimento.
Ah, sim, existe o noticiário político. Este, porém, não oferece muito mais que o relatório dos fatos do dia, às vezes com enfoque positivo, às vezes com um ângulo mais ácido, dependendo da predileção do freguês. Os sentimentos mais profundos, as resistências emocionais, os temores do povo – tudo isso, que parece ser inacessível ao discurso jornalístico, é bem mais visível no grande faz de conta da novela. Você quer ter contato com o Brasil real? Fique de olho nos romances cor-de-rosa da novela das 9. Não que lá esteja, como se diz, "a vida como ela é", mas lá você verá as emanações da vida que o jornalismo não tem conseguido enxergar. Por motivos históricos interessantíssimos, nosso novelão conquistou essa intrigante habilidade de traduzir, por seu conto de fadas, as linhas de força do imaginário nacional – e de nosso teatro político. Mentindo todos os dias, os novelistas dizem verdades tectônicas, assim como o jornalismo pode nos contar mentiras imensas registrando apenas e criteriosamente suas pequenas verdades factuais.
Aí é que entra Fina estampa, a novela das 9 que acaba de acabar. Que novidade política ela nos trouxe? Que as "bibas" passam a ser aceitas como protagonistas no Brasil. Goste-se ou não se goste, é o que é.
Esta palavra, "biba", talvez prescinda de explicações. Em todo o caso, não custa registrar que foi por meio dela, ao longo de toda a trama, que o autor Aguinaldo Silva nomeou o mordomo Crodoaldo Valério, o Crô, interpretado por Marcelo Serrado. Homossexual de extração clovisbornaica, Crô foi um pouco além da própria origem e abusou do hábito de falar de si mesmo no feminino, como se fosse mulher. Esta palavra, "biba", tem indiscutivelmente uma carga ofensiva – como quando era pronunciada pela patroa criminosa do rapaz, a vilã Tereza Cristina –, mas foi de posse desse qualificativo, foi como "biba desvairada", que Crô soube afirmar-se. Graças ao brilhantismo do ator que o representa, esse personagem conquistou o posto de atração maior, um dos mais fortes motores narrativos do enredo. Crô virou assunto nacional. O que Crô deseja virou uma questão nuclear de Fina estampa. A emancipação de Crô, antes oprimido pela madame, ganhou os contornos de uma saga heroica, embora cômica.
Crô não quis parecer um "homem normal", como se quisesse dizer que um homossexual é um ser humano como outro qualquer. Ele é a "biba" afetada, estridente, vaporosa. Ela se ajoelha para rezar diante de um ícone pop. Veste camisolas. Grita que é "diferente", "especial", "única", "esquisitérrima" e, não obstante, um sujeito político.
Esse personagem histórico, ou essa personagem histérica, esse tal de Crodoaldo Valério, ou essa tal de Crô, vem sublinhar um amadurecimento da tolerância brasileira, no melhor sentido da expressão. Depois de Crô, estamos um pouco melhor nesse quesito.
Há quem reclame do efeito "bicha caricata" que há em Crô. Quando olhamos assim diretamente para a figura da "biba", temos a sensação de que ela foi atirada numa poltrona ejetável diretamente do estúdio do Zorra total e despencou na novela sem nem retocar a maquiagem. Zorra total é sabidamente um zoológico de estereótipos selvagens, uma reserva ecológica dos preconceitos mais ancestrais, um programa em que o tempo ficou meio congelado, como numa xangri-lá decadente, onde se ri para não chorar. Mas até isso fez bem à saga heroica de Crô. Ao humanizar a caricatura de que ficou prisioneiro, ele, ou ela, além de emancipar-se, deixa o Brasil um pouco menos hipócrita. E mais bem-humorado.
Ah, sim, existe o noticiário político. Este, porém, não oferece muito mais que o relatório dos fatos do dia, às vezes com enfoque positivo, às vezes com um ângulo mais ácido, dependendo da predileção do freguês. Os sentimentos mais profundos, as resistências emocionais, os temores do povo – tudo isso, que parece ser inacessível ao discurso jornalístico, é bem mais visível no grande faz de conta da novela. Você quer ter contato com o Brasil real? Fique de olho nos romances cor-de-rosa da novela das 9. Não que lá esteja, como se diz, "a vida como ela é", mas lá você verá as emanações da vida que o jornalismo não tem conseguido enxergar. Por motivos históricos interessantíssimos, nosso novelão conquistou essa intrigante habilidade de traduzir, por seu conto de fadas, as linhas de força do imaginário nacional – e de nosso teatro político. Mentindo todos os dias, os novelistas dizem verdades tectônicas, assim como o jornalismo pode nos contar mentiras imensas registrando apenas e criteriosamente suas pequenas verdades factuais.
Aí é que entra Fina estampa, a novela das 9 que acaba de acabar. Que novidade política ela nos trouxe? Que as "bibas" passam a ser aceitas como protagonistas no Brasil. Goste-se ou não se goste, é o que é.
Esta palavra, "biba", talvez prescinda de explicações. Em todo o caso, não custa registrar que foi por meio dela, ao longo de toda a trama, que o autor Aguinaldo Silva nomeou o mordomo Crodoaldo Valério, o Crô, interpretado por Marcelo Serrado. Homossexual de extração clovisbornaica, Crô foi um pouco além da própria origem e abusou do hábito de falar de si mesmo no feminino, como se fosse mulher. Esta palavra, "biba", tem indiscutivelmente uma carga ofensiva – como quando era pronunciada pela patroa criminosa do rapaz, a vilã Tereza Cristina –, mas foi de posse desse qualificativo, foi como "biba desvairada", que Crô soube afirmar-se. Graças ao brilhantismo do ator que o representa, esse personagem conquistou o posto de atração maior, um dos mais fortes motores narrativos do enredo. Crô virou assunto nacional. O que Crô deseja virou uma questão nuclear de Fina estampa. A emancipação de Crô, antes oprimido pela madame, ganhou os contornos de uma saga heroica, embora cômica.
Crô não quis parecer um "homem normal", como se quisesse dizer que um homossexual é um ser humano como outro qualquer. Ele é a "biba" afetada, estridente, vaporosa. Ela se ajoelha para rezar diante de um ícone pop. Veste camisolas. Grita que é "diferente", "especial", "única", "esquisitérrima" e, não obstante, um sujeito político.
Esse personagem histórico, ou essa personagem histérica, esse tal de Crodoaldo Valério, ou essa tal de Crô, vem sublinhar um amadurecimento da tolerância brasileira, no melhor sentido da expressão. Depois de Crô, estamos um pouco melhor nesse quesito.
Há quem reclame do efeito "bicha caricata" que há em Crô. Quando olhamos assim diretamente para a figura da "biba", temos a sensação de que ela foi atirada numa poltrona ejetável diretamente do estúdio do Zorra total e despencou na novela sem nem retocar a maquiagem. Zorra total é sabidamente um zoológico de estereótipos selvagens, uma reserva ecológica dos preconceitos mais ancestrais, um programa em que o tempo ficou meio congelado, como numa xangri-lá decadente, onde se ri para não chorar. Mas até isso fez bem à saga heroica de Crô. Ao humanizar a caricatura de que ficou prisioneiro, ele, ou ela, além de emancipar-se, deixa o Brasil um pouco menos hipócrita. E mais bem-humorado.
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