7 de setembro de 2014

Elogio da diferença: Dicções da literatura hispano-americana

IDENTIDADE CULTURAL


JÚLIO PIMENTEL PINTO, Folha de SP, 9/9/2014
RESUMO
Coleção dedicada a apresentar no país a literatura produzida em espanhol na América Latina, indo além dos nomes consagrados internacionalmente que povoam as livrarias, cobre variedade de países e gerações. Resultado reflete heterogeneidade saudável, evitando o clichê de um ideal unívoco para o continente.
TODO MÉRITO à parte, o prestígio dos nomes latino-americanos que dominam as prateleiras das livrarias --Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges-- faz esquecer que esses não foram os primeiros nem os últimos a escrever na e sobre a América Hispânica.
Não era possível pensar que território tão extenso e variado se unisse sob um projeto literário monolítico. Por isso é saudável que uma coleção que se propõe a apresentar a América de língua espanhola ao leitor brasileiro descarte qualquer sinal de unidade ou homogeneidade --como faz a coleção Otra Língua, coordenada pelo escritor Joca Reiners Terron para a editora Rocco, que se dispõe a reunir obras de diferente densidade e qualidade.
Os oito títulos publicados desde o ano passado vêm de autores de seis nacionalidades e cinco gerações: o equatoriano Pablo Palacio (1906-47), o uruguaio Mario Levrero (1940-2004), os argentinos Roberto Arlt (1900-42), César Aira (1949) e Fabián Casas (1965), o hondurenho Horacio Castellanos Moya (1957), a mexicana Guadalupe Nettel (1973) e o boliviano Maximiliano Barrientos (1979).
Mais do que proposta estética, nacionalidade ou geração, o que os livros revelam, lidos em conjunto, é outra dicção. Ou melhor: outras dicções, outras experiências narrativas. Delas surge uma América que pode ser muitas coisas, mas dificilmente o continente que repete, em fórmulas batidas, ocas e vãs, uma unidade que nunca existiu e, felizmente, jamais existirá. Uma América que se manifesta sempre de forma loquaz e plural, e que busca no passado o ar que lhe assegure a respiração (artificial?) do presente.
Basta acompanhar as peripécias vertiginosas dos narradores dos ótimos contos de Pablo Palacio, reunidos em "Um Homem Morto a Pontapés" [trad. Jorge Wolff, R$ 32, 160 págs.; e-book R$ 21]. São muitos narradores, e todos dispostos a se apresentar e conversar diretamente com o leitor. Eles opinam, julgam, polemizam, espantam-se com as histórias que contam, intervêm nelas. Recorrem regularmente à ironia e flertam com o cinismo, em falas recheadas de interjeições. Publicado originalmente em 1927, o livro reage à tradição finissecular do 19 e dialoga com as turbulentas vanguardas, em seu afã de interpretar e reinventar as nacionalidades e as formas de expressão.
Já Roberto Arlt, em "Águas-fortes Cariocas" [trad. Gustavo Pacheco, R$ 36,50, 256 págs.; e-book R$ 25,50], de 1930, dirige sua observação e seu interesse para o presente --errático, incerto, surpreendente, multifacetado. Conjunto de 40 crônicas escritas durante uma temporada no Rio de Janeiro, essas "águas-fortes" fazem parte das séries de textos --cáusticos como o ácido que marca o metal-- que o autor escreveu para o jornal "El Mundo", de 1928 até sua morte, 14 anos depois.
A perspectiva com que Arlt enxerga o Rio reproduz, em boa medida, sua escrita peculiar, que paira sobre a literatura argentina e jamais pode ser classificada. Arlt combina registros literários diversos, passa do coloquial à norma culta na mesma frase, desobedece as regras gramaticais, insere variantes linguísticas, associa leveza e rudeza.
Embora fale do Rio, Arlt jamais esquece Buenos Aires --nem ignora as tensões políticas e sociais que cortam Brasil e Argentina no auge da crise econômica desencadeada no final da década de 1920 e dos golpes de Estado que desmantelaram, justamente em 1930, as frágeis instituições políticas lá e cá.
É nessa espécie de jogo comparativo que Arlt ancora suas melhores crônicas e consegue multiplicar seu olhar: enxerga as mazelas brasileiras como só um estrangeiro conseguiria, repensa os dilemas argentinos como o nacionalista expatriado que é.
Também da Argentina chegam duas novelas de César Aira: publicada em 1993, "Como me Tornei Freira" [trad. Angélica Freitas, R$ 36,50, 256 págs.; e-book R$ 25,50] dá título ao volume que traz ainda "A Costureira e o Vento", de 1994. Mais conhecido do leitor brasileiro, Aira combina o irracionalismo de suas tramas com a precisão e o rigor lógicos do manejo da linguagem. Irracionalidade e lógica, marcas decisivas de uma América abarrocada; irracionalidade e lógica, que compõem o díptico da memória por onde circulam os personagens das duas novelas.
Na primeira, a menina-menino César Aira --personagem central e narrador-- revisita um episódio decisivo da infância e identifica os caminhos difusos e improváveis que sua vida assumiu desde então. Na segunda novela, o fabuloso invade o território do real e o contamina: personagens espantosos confundem-se com reais, diálogos e desdobramentos imprevisíveis mesclam a percepção da vida adulta e da infância.
No singular mundo da ficção de Aira, a realidade é sempre fluida e porosa, divisa-se com a vertigem da imaginação e transborda para o texto recheado de detalhes e do esforço de contenção e compreensão. Ao leitor que aceita o confronto entre os dois mundos, resta o fascínio ininterrupto do incomum projeto estético de Aira.
É também a memória que articula as histórias de "Os Lemmings e Outros" [trad. Jorge Wolff, R$ 29,50, 160 págs.; e-book R$ 20,50], que Fabián Casas publicou originalmente em 2005.
Os relatos parecem se construir no compasso das lembranças, que, por sua vez, são embaladas por um conjunto heterogêneo de referências, em que a música pop dos anos 1970-80 convive, aparentemente sem hierarquia, com o futebol, as histórias em quadrinhos, as perseguições políticas da ditadura militar argentina (1976-83) e o horror da Guerra das Malvinas (1982).
A vida se desenha, para os personagens de Casas, a partir das relações que o passado constrói: relações humanas --a força das ações coletivas, a reinvenção do indivíduo quando se torna parte de um grupo--, sociais e políticas --um país à beira do caos, que tenta se reerguer--, morais --os limites da maldade num mundo de valores instáveis-- e, claro, as relações entre a literatura e a realidade.
A necessidade de narrar vem da ânsia de compreender um mundo exageradamente complexo: aquele em que somos forçados a crescer e no qual envelheceremos e morreremos. Um mundo que só é possível compreender se nos esforçarmos para construir um tipo de autoficção da vida em grupo: afinal, nós, americanos, dispomos ou não de um passado compartilhado, compartilhável?
O terreno sempre instável e pantanoso da memória --suas falésias, seus abismos-- e a revisitação do passado estão presen tes, ainda, em "O Corpo em que Nasci" [trad. Ronaldo Bressane, R$ 34,50, 224 págs.; e-book R$ 24], de Guadalupe Nettel, de 2011.
A narradora --que se confunde facilmente com a autora-- relata sua formação ao leitor-terapeuta: os passos da vida de alguém que descobre, na infância, uma mancha branca sobre a córnea do olho direito. De um lado, expõe a limitação física e íntima; de outro, a turbulência da vida que vaga por geografias diversas, por idades contrastantes --da juventude à maturidade-- e pela custosa construção da consciência individual em meio à tensão política das décadas de 1970 e 1980. O aprendizado de si mesma não difere, afinal, do reconhecimento do chão que ela pisa, das pessoas que a circundam. Do mundo que queríamos que fosse nosso, mas não o é.
FUGA Em meio ao desconsolo do lugar-nenhum, para alguns resta a fuga, e essa é a opção dos protagonistas de "Hotéis" [trad. Joca Reiners Terron, R$ 24, 128 págs.; e-book R$ 15,50], de Maximiliano Barrientos. No livro, de 2011, eles veem o mundo como um filme, pela janela do carro em movimento.
Simultaneamente, um filme traduz a viagem em outra linguagem, espécie de documentário do tempo vivido, e cada personagem enxerga seu passado e seu presente por um prisma distinto e flexível: todos querem lembrar, mas às vezes optam por esquecer; estão lado a lado, mas seus olhares são autônomos e, entre fantasias e remorsos, quase sempre divergem; encontram-se e se desencontram. Assistem, numa angustiante paralisia, à destruição das próprias vidas, à dissolução do futuro.
Também de derrocadas trata o excelente "Asco" [trad. Antônio Xerxenesky, R$ 23,50, 112 págs.; e-book R$ 16,50], de Horacio Castellanos Moya, publicado originalmente em 1997. Nele, um homem chamado Edgardo Vega volta a El Salvador, país que abandonou anos antes, e confirma suas piores predições: por lá nada presta. Vega destrincha a repulsa --o asco do título-- frente à aparência de seu local de origem e do que essa aparência esconde: um universo de mentiras e fracassos, de bebidas ruins e pessoas sem escrúpulos.
Tudo é crueza no longo relato de Vega, que o leitor conhece através de Moya, seu interlocutor. Moya escuta o amigo e transpõe seu discurso para o papel: é o narrador do romance; narrador aparentemente discreto, mas incisivo na maneira como amplifica a voz alheia, (re)articula seus argumentos, adensa sua voracidade.
Se Vega é o olhar de fora --talvez por isso consiga ser tão ríspido e rude, iconoclasta absoluto--, Moya é o olhar de dentro: pode passar despercebido ao observador incauto, mas seu silêncio de concordância é eloquente. Não por acaso, o livro de Castellanos --que, embora hondurenho, viveu dos 4 aos 22 anos em El Salvador-- gerou reações enfurecidas no país.
A indignação devastadora de "Asco" é substituída, em "Deixa Comigo" [trad. Joca Reiners Terron, R$ 27, 160 págs.], de Mario Levrero, original de 1998, por um jogo ácido de acertos e enganos, pela interferência decisiva do acaso e da inconsciência na construção da realidade e da ficção.
O narrador é um escritor que tem seus originais recusados numa editora, mas, em troca, é incumbido de procurar outro escritor, tão extraordinário quanto desconhecido, autor de um manuscrito que entorpeceu o editor.
O paradoxo da identidade --eu, espelho do outro-- se instala enquanto ele avança pelo interior do país, segue pistas precárias --num simulacro das narrativas policiais que tanto agradam a Levrero-- e desvenda, à primeira vista, o mistério da autoria.
Mas o narrador sabe que nenhuma autoria é fixa e nenhum texto tem mão única, aprende que toda identificação é encontro, reconhecimento e perda. Por isso, rapidamente assume outras missões e prossegue, com humor peculiar e improvável esperança, na busca de melhores dias para a literatura.
A América Hispânica mostrada pela coleção é fascinante porque totalmente estranha aos clichês e às ideias prontas; é tão nossa quanto alheia, bem distinta da que foi inventada pela maioria das narrativas canonizadas da década de 1960, em seu esforço de diagnosticar o passado terrível para buscar o futuro sonhado --sonho que, transposto o umbral do século 21, nem sequer podemos cogitar.
Da reunião algo anárquica de gerações, nacionalidades, estilos e projetos literários proposta pela coleção, brota outra América, que, na verdade é muitas Américas, um carrossel delas: um continente à deriva, barco bêbado. E isso é bom.

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