17 de agosto de 2010

VALOR 17/08/2010

Conveses do desenvolvimento

José Eli da Veiga

É primária a visão dicotômica do mundo em dois
escalões: algumas nações já "desenvolvidas" e todas
as outras eufemisticamente consideradas "em
desenvolvimento". Ignora a existência de uma
semiperiferia agora chamada "emergente", "em
ascensão", ou "novo segundo mundo".

Daí a importância da classificação adotada pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(Pnud), na qual os 182 países que dispunham de
dados confiáveis para 2007 figuram em quatro
conveses: de baixo, médio, alto e altíssimo
desenvolvimento.

Menos de 6% da população mundial tenta sobreviver
nos 24 países que não saem do porão, onde a
expectativa de vida ao nascer é de apenas 51 anos e
nem metade dos jovens estão na escola. O Produto
Interno Bruto (PIB) per capita, que em 2007 era de
ínfimos U$ 380, manteve-se literalmente estagnado
nos 17 anos anteriores. E esse é o único dos quatro
conveses com forte expansão demográfica: de 2,9%
ao ano no período 1990-1995, caiu apenas para 2,7%
ao ano em 2005-2010.

Em forte contraste, o imenso deque está ocupado
por 75 países com praticamente dois terços da
população. Já alcançou boas condições de saúde,
pois a esperança de vida é de 70 anos. O que,
infelizmente, ainda não ocorre com a educação: só
63,3%
dos
jovens
estão
matriculados
em
estabelecimentos de ensino. Mas o PIB per capita,
que em 2007 era quase o quíntuplo - US$ 1.746 - teve
o mais elevado aumento médio nos 17 anos
anteriores: 4,8%.

Acima, no espaço das cabines, estão 45 países com
apenas 14% da população. Nesse bloco, a esperança
de vida ao nascer já se aproxima dos 73 anos e
estudam 82% dos jovens. O PIB per capita que, outra
vez, quase quintuplica - US$ 8,5 mil em 2007 - teve
aumento médio de 2,1% nos 17 anos anteriores.

E na cabine de comando os 38 mais avançados, com
15% da população, desfrutam de esperança de vida
que ultrapassa os 80 anos. Estudam 92,5% de seus

jovens. E o PIB per capita, que mais uma vez dá um
salto quíntuplo - chegando perto dos US$ 40 mil em
2007 - ainda aumentou 1,8% ao ano entre 1990 e
2007.

Pode-se deduzir dessa metáfora náutica que o
desenvolvimento mantenha uma relação proporcional
com o grau de afluência aferido pelo PIB per capita.
Ou que exista forte correlação entre os níveis de PIB
per capita atingidos e três das mais decisivas
dimensões do desenvolvimento: saúde, educação e
demografia.

Lei que não se confirma, contudo, para o
desempenho de cada nação, em vez de médias de
blocos. E a relação é até inversa com a dupla Brasil e
Rússia, por exemplo. Apesar de essas duas economias
terem tido idêntica taxa de crescimento do PIB per
capita no período 1990-2007 (1,2%), no fim desse
período o da Rússia já ia além dos US$ 9 mil,
enquanto o do Brasil nem chegara aos US$ 7 mil.

Discrepância que decorre, é claro, da demografia.
Apesar de o PIB brasileiro em 2007 ter sido
ligeiramente superior (US$ 1.313,4 bilhões versus US$
1.290,1 bilhões), a população da Rússia já está em
queda, enquanto a do Brasil ainda aumenta 1% ao
ano. O mais relevante, contudo, é que a vantagem
russa no PIB per capita não se traduz em mais saúde
e educação. O Brasil vence de 72,2 a 66,2 na
esperança de vida e de 87,2 a 81,9 na taxa de jovens
estudando.

Tal contraste merece a atenção de quem acredita
que o desenvolvimento responda automaticamente
ao aumento do PIB per capita, para nem mencionar a
ignóbil crença de que desenvolvimento seja mero
sinônimo de crescimento econômico. Se assim fosse,
nos últimos três decênios teria sido forçosamente
pífio o desenvolvimento da sociedade brasileira.

Ao contrário, foi muito mais intenso nos últimos
trinta anos do que em qualquer período anterior. O
oposto do que ocorreu com o crescimento medido
pelo aumento do PIB per capita. Por mais de um
século (1870-1980) essa economia foi campeã de
crescimento entre as dez maiores do mundo.
Ultimamente só não ficou com a lanterna por causa
da persistente estagnação japonesa. Ou seja, nos
últimos
trinta
anos
houve
muito
mais
desenvolvimento com muito menos crescimento.

Fenômeno que nada tem de paradoxal para quem
sabe que o desenvolvimento de uma sociedade
depende da eficiência com que é capaz de aproveitar
os frutos do desempenho econômico para expandir e
distribuir oportunidades de acesso a bens como:

liberdades cívicas, saúde, educação, emprego
decente etc. Ainda mais para quem já entendeu
também que o desenvolvimento terá pernas curtas se
a natureza for demasiadamente agredida pela
expansão da economia, subsistema altamente
dependente da conservação da biosfera.

De resto, enquanto na cabine de comando já se
discute a possibilidade de "prosperar sem crescer",
no porão ainda nem se decolou. E nos intermediários,
como o Brasil, o desafio é a qualidade do
crescimento, ideia exposta na seção "Pensata" da
edição de julho/setembro da RAE, Revista de
Administração de Empresas (p. 338-344), intitulada
"Economia política da qualidade" que estará
disponível no website da RAE:
www16.fgv.br/rae/rae/index.cfm

José Eli da Veiga, professor titular da USP (FEA e IRI), escreve
mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.pro.br .

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