Terça-feira, 20 de Março de 2012, Valor
Com o imprescindível rearranjo da base parlamentar do governo, não há como
prever quando e como será revogado o quase-cinquentão "Novo Código
Florestal".
Se dependesse apenas de deputados favoráveis à especulação fundiária
travestida de pecuária de corte extensiva, com certeza isso não passaria desta
semana. Eles contariam com os votos dos inocentes úteis que sempre são
solidários à agricultura, de muitos outros barganhados com mercadores
fariseus dos templos evangélicos, além dos rotineiramente fisgáveis no imenso
pântano de oportunistas que pouco se lixam para as consequências
econômicas, institucionais e ecológicas de tão grave decisão.
Tamanha tragédia certamente seria evitada se, ao contrário, o desfecho
dependesse exclusivamente da primeira presidente do Brasil, eleita com
55.752.529 votos (12 milhões a mais que o adversário) e há muito convicta de
que "a vida quer é coragem", como conta o excelente livro do jornalista
Ricardo Batista Amaral (Sextante, 2011). Que ninguém se iluda: a presidente
fará tudo o que estiver ao seu alcance para impedir ou minimizar retrocessos,
como afirma com meridiana clareza sua firme resposta à carta aberta que a
ex-senadora Marina Silva submeteu aos candidatos do segundo turno.
A grande ironia, contudo, é que a lei que revogará o Código não escapará de
convalidar boa parte dos estragos já perpetrados aos santuários de prudência
econômico-ecológica que deveriam ter sido todas as "Áreas de Preservação
Permanente" (APP). Também não poderá deixar de anistiar agricultores que
tenham agido de boa fé.
O problema é que tais fatalidades não devem servir de pretexto para que
especuladores imobiliários rurais sejam os principais beneficiários da
atualização do Código. Então, se a racionalidade econômica tiver alguma
chance de ser levada em conta, a melhor saída será uma inciativa presidencial
de garantir (por decretos ou MP) a mais clara, imediata e integral segurança
jurídica aos verdadeiros estabelecimentos agrícolas que só tenham
desrespeitado o Código antes de 1999, mas sem extensão para imóveis rurais
de caráter especulativo. Estes é que querem ver perdoados os desmatamentos
sem licença posteriores à Lei de Crimes Ambientais, que efetivou as
disposições pertinentes da Constituição de 1988.
Uma vez separado o joio do trigo, certamente ficará bem menos contenciosa
a obtenção de razoáveis ajustes sobre ao menos três dos principais retrocessos
que foram oportunisticamente inseridos no substitutivo do Senado: 1) capim em APP como simulacro de atividade pecuária, 2) tamanho de imóvel rural no
lugar de categoria de estabelecimento agrícola, e 3) inéditos incentivos à
destruição de manguezais.
Dos 55 milhões de hectares roubados às APP, nada menos de 44 milhões estão
cobertos de imaginárias pastagens. É inaceitável que crime tão hediondo
venha a ser "consolidado". Outros 56 milhões de hectares constituem o hiato
entre a área ocupada por imóveis rurais de até quatro módulos fiscais e a área
dos estabelecimentos agrícolas familiares. Só minúscula parte desse hiato é
de agricultura patronal de médio porte. E dos 1,3 milhão de hectares de
manguezais que se estendem por 16 Estados, entre Amapá e Santa Catarina,
ao menos 200 mil hectares seriam detonados por salinas e criações de
camarão.
Em vez de tomar consciência desses três graves atentados ao patrimônio
socioambiental do Brasil, muita gente honesta andou sendo persuadida de que
o substitutivo do Senado seria o menor dos males. Principalmente por
influência da duvidosa aritmética do colega João de Deus Medeiros, professor
do departamento de botânica da UFSC, que foi diretor do departamento de
florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) enquanto tramitou a chamada
"reforma" do Código Florestal.
Nessa claudicante avaliação, o substitutivo do Senado levaria à recomposição
florestal de 33 milhões de hectares: 18 milhões em reservas legais (RL) de
imóveis com áreas superiores a quatro módulos fiscais, quase 13 milhões em
APP de margens de cursos d'água (ripárias), e quase 2 milhões em APP de
topos de morros. Assim, em 20 anos seria parcialmente honrado o
compromisso da presidente de impedir reduções de APP e RL, mesmo que com
amplo indulto aos criminosos desmatamentos dos últimos 15 anos.
Essa conta nem consegue dourar a pílula, pois é de 83 milhões de hectares a
área que não está em conformidade com o Código Florestal. É o que
demonstram os estudos coordenados pelo colega Gerd Sparovek, da
Esalq/USP. Então, mesmo que fosse admitida a saída de Poliana proposta pelo
ex-diretor de florestas do MMA, a promulgação do substitutivo do Senado
significaria escandalosa entrega de 50 milhões de hectares à devastação. Pior,
sem significativa vantagem real a milhões de abnegados produtores agrícolas,
pois o grosso dessa área está simplesmente travestido de pastagem para fazer
com que tais domínios passem por estabelecimentos de pecuária de corte
extensiva.
Em suma: a melhor saída é atender o clamor dos agricultores por segurança
jurídica, para depois tratar a pão e água os especuladores.
José Eli da Veiga é professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações
Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). Escreve
mensalmente às terças. Página web: www.zeeli.p
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