BOL, 2 de Julho,2012
A família Senna ganhou mais um troféu internacional recentemente. Mas a corrida premiada desta vez --longa, com obstáculos e aparentemente sem fim-- é pela melhoria da educação no Brasil.O trabalho da psicóloga Viviane Senna, criadora do instituto que leva o nome do seu irmão piloto Ayrton, morto em 1994, acabou de vencer o prêmio Grand Prix do banco francês BNP Paribas --o sétimo maior do mundo.
Essa é a primeira vez que o BNP Paribas reconhece o trabalho de um empreendedor social na América.
Viviane concorreu com nomes de 90 países. A escolha --por unanimidade-- veio de um júri internacional robusto, coordenado pelo Nobel de Economia Amartya Sen, que criou o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e hoje é professor de Harvard.
Mas a corrida não está ganha. Ainda hoje, metade das crianças que entra na escola no Brasil não conclui o ensino básico. "Falta levar a eficiência do setor privado para as escolas pública", diz.
Em Paris, onde recebeu a premiação, ela conversou com a Folha pelo telefone.
*
Folha - A senhora tem realizado um trabalho importante na em educação no Brasil há 16 anos. O que a senhora acredita que a levou a ganhar o prêmio do banco BNP Paribas agora?
Viviane Senna - Soube que o júri ficou impressionado com a escala do trabalho do instituto [são dois milhões de crianças atendidas em 1.300 municípios de 25 estados].
O júri comentou que nunca viu um trabalho com essa escala, é algo inédito no mundo.
O Instituto Ayrton Senna mostra que podemos ter um trabalho em larga escala de maneira eficiente. Hoje o que vemos é na educação pública do Brasil é um cenário de larga escala, que atinge a quase totalidade das crianças no início da idade escolar, mas que não tem qualidade.
Ou seja, a educação pública brasileira tem quantidade, mas não tem qualidade.
Sim, o desafio do Brasil é colocar quantidade e qualidade na mesma equação. Hoje, o Estado faz bem apenas a quantidade. A rede pública atende quase a universalidade das crianças --98%, o que dá cerca de 50 milhões de pessoas. Isso é uma Espanha inteira. Mas a qualidade caiu muito. Há algumas décadas era ao contrário: a educação pública tinha qualidade, mas atendia poucas pessoas. Continuamos tendo uma educação para poucos, pois a qualidade está concentrada no setor privado.
Hoje, a cada dez crianças que entram na 1a série, só cinco saem do ensino básico. Perdemos metade das crianças do país nesse trajeto. Isso é muita ineficiência! Imagine se uma empresa como a uma Vale perderia metade do seu minério no transporte? Ou um hospital perdesse 50% dos seus pacientes? É isso que fazemos com o principal capital do país, a educação.
Essa ineficiência da é resultado da universalização, ou seja, da priorização da quantidade?
O problema não é apenas a quantidade. Há países que têm muitas crianças no setor público e que não fazem esse estrago na educação. É um problema basicamente de gestão. Não temos uma cultura no sistema público de foco em resultados, de acompanhamento das atividades. A cultura da eficiência é privada, mas não é pública. Temos escolas que não ensinam e, por isso, temos crianças que não aprendem ou aprendem muito pouco. Por isso, a criança começa a repetir, vai ficando cada vez mais atrasada e, depois de muitos fracassos, acaba desistindo da escola.
Ou seja: a escola pública de hoje acaba expulsando o aluno ao invés de atraí-lo.
Sim. A criança não desiste logo, os estudos mostram que a criança fica insistindo na escola. Mas a educação é um investimento e, se a criança não evoluir, ela deixa a escola. As famílias tiram a criança da escola não porque não gostam, mas porque não veem resultados. O sistema expulsa a criança.
E as razões alegadas para esses péssimos resultados são equivocadas. Antigamente diziam que as crianças eram subnutridas e, por isso, não aprendiam. Mas isso não é verdade. Não temos um padrão africano de pobreza, com exceção de algumas localidades do país. Dizer que a criança brasileira não aprende porque está subnutrida é uma lenda. Outra lenda é que as crianças, mais atual, é que as crianças mais pobres não aprendem porque têm famílias desestruturadas.
Mas a pobreza e a família desestruturada não prejudicam o aprendizado das crianças?
Claro que a pobreza e a família desestruturada não ajudam e são um fator contra a educação. Mas não podemos lavar as mãos e dizer que não podemos fazer a criança aprender. Não podemos esperar as crianças enriquecerem e que tenham famílias estruturadas para ensiná-las. É exatamente o contrário: justamente essas crianças pobres e com problemas na família é que precisam de uma ação agora. As crianças brasileiras são pobres, não são crianças belgas, e a escola brasileira tem de ser feita para a criança brasileira. Continuamos fazendo uma escola para quem tem condições de aprender sozinha. Por exemplo, hoje o "efeito escola" no Brasil é de cerca de 30% no aprendizado de uma criança brasileira. Já o "efeito família" é 70%. A escola deveria ser determinante no aprendizado. Mas ela é tão fraca que o papel da família acaba tendo um peso maior.
É como se estivéssemos dando um remédio diluído para as nossas crianças. O remédio está lá, mas não fará efeito. A escola pública hoje é um estacionamento de crianças. Ou uma lanchonete, ou seja, um lugar para a criança comer. Essa é outra ideia equivocada. A escola é o lugar para se ensinar.
Soube que o seu discurso ao receber o prêmio do BNP Paribas fez com que parte da plateia de 300 pessoas chorasse. O que causou essa emoção?
Eu dei o exemplo de uma criança pobre e analfabeta do interior de Pernambuco que passou pelo programa que desenvolvemos juntos com estados e municípios para melhorar a gestão da escola e para capacitar os professores. Na cidade da garota. 70% da população vive abaixo da pobreza. O IDH segue padrão africano, perto de Botsuana. Essa garota chegou ao ensino médio e, por isso, ela passou a ter apenas 0,3% de chance de ser pobre. No Brasil, quem tem ensino médio sai "automaticamente" da ponta da população mais pobre. Foi como se tivéssemos dado um passaporte para ela, se tivéssemos tirado ela de Botsuana para colocar em outro país. Com isso quebramos o elo entre a ignorância e da pobreza, começando pela ignorância. É isso que tem de ser feito no Brasil.
Qual é a sua percepção da evolução da educação do Brasil desde que a senhora
No começo, em meados da década de 1990, houve uma piora. Depois melhorou um pouco. Observo que estamos fazendo um movimento em direção da melhora da educação. Mas ter 10% ou 20% de eficiência na educação, ou seja, colocar dez crianças na escola e formar uma ou duas é muito pouco.
Temos de tornar o sistema público mais capaz de realizar a sua própria função. O que fazemos é justamente transformar a escola e torná-la capaz de realizar a sua função. Não fazemos atendimentos no varejo, nós formamos pessoas em larga escala.
Como surgiu essa ideia de trabalhar nas escolas e não atendendo crianças?
Desde que criei o instituto, bati muito a cabeça. No começo eu fazia o que a maioria das ONGs faz: atendimentos a um determinado grupo de crianças. Nos primeiros dois anos, estávamos atendendo cerca de 40 mil crianças. Era como seu eu estivesse construindo uma Disneylândia, ou seja, um mundo ideal para um pequeno grupo de crianças. Até que eu entendi que o problema é de larga escala. Por isso temos de desenvolver soluções que sejam capazes de atender no atacado.
No Brasil, a maioria das crianças fica de fora do atendimento de verdade. Temos de fazer larga escala com eficiência porque fazer baixa escala de qualidade ou larga escala ineficiente não resolve nada. Por isso, transformei o instituto em um centro de produção do conhecimento.
Como isso funciona?
É como em um laboratório de pesquisa. Não adiantar resolver problemas pontuais, é preciso desenvolver uma vacina que funciona em larga escala. Então a ideia foi ter um instituto especializado em produzir conhecimento. Por exemplo, nós formamos cerca de 70 mil professores por ano. Isso é mais do que formam as escolas de pedagogia. Por isso recebemos a Cátedra da Unesco [em 2004, o instituto foi a primeira ONG a integrar a rede de CátedrasUnesco no mundo]. Essas cátedras são dadas apenas a universidades e centros de pesquisa.
Qual é a maior dificuldade do seu trabalho?
Existe uma série de dificuldades. A principal é trabalhar em larga escala. Além disso, temos um problema de governança. Quando muda o prefeito ou o governador, mudam as políticas, os projetos são interrompidos. Isso é um grande problema.
A família Senna ganhou mais um troféu internacional recentemente. Mas a corrida premiada desta vez --longa, com obstáculos e aparentemente sem fim-- é pela melhoria da educação no Brasil.O trabalho da psicóloga Viviane Senna, criadora do instituto que leva o nome do seu irmão piloto Ayrton, morto em 1994, acabou de vencer o prêmio Grand Prix do banco francês BNP Paribas --o sétimo maior do mundo.
Essa é a primeira vez que o BNP Paribas reconhece o trabalho de um empreendedor social na América.
Viviane concorreu com nomes de 90 países. A escolha --por unanimidade-- veio de um júri internacional robusto, coordenado pelo Nobel de Economia Amartya Sen, que criou o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e hoje é professor de Harvard.
Mas a corrida não está ganha. Ainda hoje, metade das crianças que entra na escola no Brasil não conclui o ensino básico. "Falta levar a eficiência do setor privado para as escolas pública", diz.
Em Paris, onde recebeu a premiação, ela conversou com a Folha pelo telefone.
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Folha - A senhora tem realizado um trabalho importante na em educação no Brasil há 16 anos. O que a senhora acredita que a levou a ganhar o prêmio do banco BNP Paribas agora?
Viviane Senna - Soube que o júri ficou impressionado com a escala do trabalho do instituto [são dois milhões de crianças atendidas em 1.300 municípios de 25 estados].
O júri comentou que nunca viu um trabalho com essa escala, é algo inédito no mundo.
O Instituto Ayrton Senna mostra que podemos ter um trabalho em larga escala de maneira eficiente. Hoje o que vemos é na educação pública do Brasil é um cenário de larga escala, que atinge a quase totalidade das crianças no início da idade escolar, mas que não tem qualidade.
Ou seja, a educação pública brasileira tem quantidade, mas não tem qualidade.
Sim, o desafio do Brasil é colocar quantidade e qualidade na mesma equação. Hoje, o Estado faz bem apenas a quantidade. A rede pública atende quase a universalidade das crianças --98%, o que dá cerca de 50 milhões de pessoas. Isso é uma Espanha inteira. Mas a qualidade caiu muito. Há algumas décadas era ao contrário: a educação pública tinha qualidade, mas atendia poucas pessoas. Continuamos tendo uma educação para poucos, pois a qualidade está concentrada no setor privado.
Hoje, a cada dez crianças que entram na 1a série, só cinco saem do ensino básico. Perdemos metade das crianças do país nesse trajeto. Isso é muita ineficiência! Imagine se uma empresa como a uma Vale perderia metade do seu minério no transporte? Ou um hospital perdesse 50% dos seus pacientes? É isso que fazemos com o principal capital do país, a educação.
Essa ineficiência da é resultado da universalização, ou seja, da priorização da quantidade?
O problema não é apenas a quantidade. Há países que têm muitas crianças no setor público e que não fazem esse estrago na educação. É um problema basicamente de gestão. Não temos uma cultura no sistema público de foco em resultados, de acompanhamento das atividades. A cultura da eficiência é privada, mas não é pública. Temos escolas que não ensinam e, por isso, temos crianças que não aprendem ou aprendem muito pouco. Por isso, a criança começa a repetir, vai ficando cada vez mais atrasada e, depois de muitos fracassos, acaba desistindo da escola.
Ou seja: a escola pública de hoje acaba expulsando o aluno ao invés de atraí-lo.
Sim. A criança não desiste logo, os estudos mostram que a criança fica insistindo na escola. Mas a educação é um investimento e, se a criança não evoluir, ela deixa a escola. As famílias tiram a criança da escola não porque não gostam, mas porque não veem resultados. O sistema expulsa a criança.
E as razões alegadas para esses péssimos resultados são equivocadas. Antigamente diziam que as crianças eram subnutridas e, por isso, não aprendiam. Mas isso não é verdade. Não temos um padrão africano de pobreza, com exceção de algumas localidades do país. Dizer que a criança brasileira não aprende porque está subnutrida é uma lenda. Outra lenda é que as crianças, mais atual, é que as crianças mais pobres não aprendem porque têm famílias desestruturadas.
Mas a pobreza e a família desestruturada não prejudicam o aprendizado das crianças?
Claro que a pobreza e a família desestruturada não ajudam e são um fator contra a educação. Mas não podemos lavar as mãos e dizer que não podemos fazer a criança aprender. Não podemos esperar as crianças enriquecerem e que tenham famílias estruturadas para ensiná-las. É exatamente o contrário: justamente essas crianças pobres e com problemas na família é que precisam de uma ação agora. As crianças brasileiras são pobres, não são crianças belgas, e a escola brasileira tem de ser feita para a criança brasileira. Continuamos fazendo uma escola para quem tem condições de aprender sozinha. Por exemplo, hoje o "efeito escola" no Brasil é de cerca de 30% no aprendizado de uma criança brasileira. Já o "efeito família" é 70%. A escola deveria ser determinante no aprendizado. Mas ela é tão fraca que o papel da família acaba tendo um peso maior.
É como se estivéssemos dando um remédio diluído para as nossas crianças. O remédio está lá, mas não fará efeito. A escola pública hoje é um estacionamento de crianças. Ou uma lanchonete, ou seja, um lugar para a criança comer. Essa é outra ideia equivocada. A escola é o lugar para se ensinar.
Soube que o seu discurso ao receber o prêmio do BNP Paribas fez com que parte da plateia de 300 pessoas chorasse. O que causou essa emoção?
Eu dei o exemplo de uma criança pobre e analfabeta do interior de Pernambuco que passou pelo programa que desenvolvemos juntos com estados e municípios para melhorar a gestão da escola e para capacitar os professores. Na cidade da garota. 70% da população vive abaixo da pobreza. O IDH segue padrão africano, perto de Botsuana. Essa garota chegou ao ensino médio e, por isso, ela passou a ter apenas 0,3% de chance de ser pobre. No Brasil, quem tem ensino médio sai "automaticamente" da ponta da população mais pobre. Foi como se tivéssemos dado um passaporte para ela, se tivéssemos tirado ela de Botsuana para colocar em outro país. Com isso quebramos o elo entre a ignorância e da pobreza, começando pela ignorância. É isso que tem de ser feito no Brasil.
Qual é a sua percepção da evolução da educação do Brasil desde que a senhora
No começo, em meados da década de 1990, houve uma piora. Depois melhorou um pouco. Observo que estamos fazendo um movimento em direção da melhora da educação. Mas ter 10% ou 20% de eficiência na educação, ou seja, colocar dez crianças na escola e formar uma ou duas é muito pouco.
Temos de tornar o sistema público mais capaz de realizar a sua própria função. O que fazemos é justamente transformar a escola e torná-la capaz de realizar a sua função. Não fazemos atendimentos no varejo, nós formamos pessoas em larga escala.
Como surgiu essa ideia de trabalhar nas escolas e não atendendo crianças?
Desde que criei o instituto, bati muito a cabeça. No começo eu fazia o que a maioria das ONGs faz: atendimentos a um determinado grupo de crianças. Nos primeiros dois anos, estávamos atendendo cerca de 40 mil crianças. Era como seu eu estivesse construindo uma Disneylândia, ou seja, um mundo ideal para um pequeno grupo de crianças. Até que eu entendi que o problema é de larga escala. Por isso temos de desenvolver soluções que sejam capazes de atender no atacado.
No Brasil, a maioria das crianças fica de fora do atendimento de verdade. Temos de fazer larga escala com eficiência porque fazer baixa escala de qualidade ou larga escala ineficiente não resolve nada. Por isso, transformei o instituto em um centro de produção do conhecimento.
Como isso funciona?
É como em um laboratório de pesquisa. Não adiantar resolver problemas pontuais, é preciso desenvolver uma vacina que funciona em larga escala. Então a ideia foi ter um instituto especializado em produzir conhecimento. Por exemplo, nós formamos cerca de 70 mil professores por ano. Isso é mais do que formam as escolas de pedagogia. Por isso recebemos a Cátedra da Unesco [em 2004, o instituto foi a primeira ONG a integrar a rede de CátedrasUnesco no mundo]. Essas cátedras são dadas apenas a universidades e centros de pesquisa.
Qual é a maior dificuldade do seu trabalho?
Existe uma série de dificuldades. A principal é trabalhar em larga escala. Além disso, temos um problema de governança. Quando muda o prefeito ou o governador, mudam as políticas, os projetos são interrompidos. Isso é um grande problema.
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