11 de dezembro de 2014

CLÓVIS ROSSI Tortura, Brasil e Estados Unidos


Maneira de reagir a essa abominação diz muito sobre a cultura brasileira de cultivar a impunidade
Tortura é abominável. Ponto.
Mas, quando ela desgraçadamente ocorre, é importante examinar as diferentes reações a ela (e a outras violações aos direitos humanos) no Brasil e nos Estados Unidos.
Lá, um braço do Estado, o Senado ou mais exatamente seu Comitê de Inteligência, debruçou-se com empenho durante cinco anos para produzir 6.000 devastadoras páginas sobre o mecanismo usado pela CIA depois que o então presidente George W. Bush declarara a guerra ao terrorismo (2001).
Aqui, o Estado recusou-se a investigar as violações aos direitos humanos praticadas durante a ditadura (1964/85).
Nesses praticamente 30 anos decorridos, passaram pelo poder José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Nenhum deles mexeu uma palha.
Só Dilma Rousseff o fez. E, assim mesmo, para, digamos, terceirizar a investigação ao nomear uma Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório foi divulgado nesta quarta-feira, 10.
Por sorte, a CNV é composta por seis das mais dignas figuras que a sociedade civil brasileira produziu.
Mas, ainda assim, não podem ser considerados, individual ou coletivamente, como vozes do Estado brasileiro, mesmo que o relatório seja encampado pela presidente.
A diferença de comportamento entre os dois países muito provavelmente se deve, entre outros fatores, à inexistência de "accountability" ao sul do Equador. É uma palavra que não tem tradução precisa em português (em espanhol tampouco, diga-se). A que mais se aproxima é "prestação de contas".
Mesmo com essa tradução livre, é palpável a diferença de comportamento dos agentes públicos e privados lá e cá.
Lá, a "accountability" é um dever inscrito no DNA das instituições. Aqui, é encarada, usualmente, como um favor que agentes públicos ou privados prestam à sociedade.
Basta ver a relutância/omissões da Petrobras no escândalo em curso para perceber a resistência em prestar contas.
Lá, a senadora Dianne Feinstein assume que torturas praticadas no curso da chamada guerra ao terror representam "uma mancha em nossos valores e em nossa história".
Aqui, os membros da CNV são obrigados a publicar artigo nesta Folha para cobrar: "É imperativo que haja, por parte das Forças Armadas, o reconhecimento de sua responsabilidade institucional".
Afinal, como disse Barack Obama sobre o relatório contra a CIA, "nenhum país é perfeito, mas uma das for­ças que tornam a Amé­ri­ca ex­cep­cio­nal é nossa vo­n­tade de enfren­tar aber­ta­men­te nosso passado, en­ca­rar nossas im­per­feições, fazer mudanças e melhorar".
Encarar o passado exige, sempre em nome da "accountability", deixar claro que a anistia só beneficiou os torturadores.
As vítimas da tortura (e de outras violações aos direitos humanos) foram todas punidas. Ou no marco da legislação anterior ao golpe de 1964 ou pelas regras (ilegítimas) editadas pela ditadura ou, até, acima e à margem de uma e de outras.
Fugir do passado não o modifica.
crossi@uol.com.br, Folha de S.Paulo, 10/12/2014

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