Nunca imaginei que veria a seleção perder de 7 a 1, a água de São Paulo secar e uma nave pousar no cometa
FOLHA DE S.PAULO, 28/12/2014
Nunca imaginei, quando tinha dez anos, que um dia veria homens andando sobre a Lua. Poucos anos depois, a coisa aconteceu.
"Ver", no caso, é modo de dizer.
Foi em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, onde passava as férias de julho. Não tínhamos televisão em casa. Um vizinho mais abastado nos deu guarida, mas não vimos grande coisa: a TV era preto-e-branco; a recepção no litoral, então, pior que sinal de celular hoje em dia; o chuvisco da imagem não permitia discernir grande coisa.
Menino, eu vi. Com ajuda da imaginação, vá lá. Mas vi.
Nunca imaginei, adolescente, que um dia veria a imagem de um átomo. Nem, muito menos, dos orbitais que um grande professor do Colégio Equipe (Antonio Carlos Pavão) chamava de "nuvens de probabilidade" para a presença de elétrons.
Homem feito, não é que vi? Jornalista, recém-editor, tive o privilégio de publicar as imagens. Não eram propriamente fotografias, mas espécies de gráficos gerados por microscópios de tunelamento, força atômica, ou algo assim.
Com alguma imaginação, dei-me por satisfeito. Muito satisfeito.
Nunca imaginei, muito menos morando na Alemanha, que um dia veria a queda do Muro de Berlim.
Pois vi. Desde Stuttgart, a mais de 500 km de distância, mas vi.
Por entusiasmante que seja presenciar a história acontecer diante dos olhos, não foi bonito de ver. Erich Honecker e Egon Krenz já foram tarde, e levaram com eles qualquer ilusão sobre o socialismo. Só que a Alemanha Oriental, um país triste, agonizou por quase 11 meses à vista de todo o mundo, e ao cinza da tristeza se juntou o chumbo da vergonha e da derrota.
Nunca imaginei, de volta ao Brasil, que um dia veria algo parecido com a derrubada das torres gêmeas em Nova York, no 11 de setembro de 2001. Dirigia sobre o Minhocão e ouvi a notícia no rádio. Vi sem ver, com os olhos da imaginação e do terror.
Nunca imaginei, já sendo pai de família, que um dia veria a inflação acabar. Ou melhor, a hiperinflação. Mas aconteceu. Juro.
Nunca imaginei que Fernando Henrique Cardoso, pai de um colega de meu irmão, um dia seria presidente da República. Nem, muito menos, que passaria a faixa para um operário inspirado, Luiz Inácio Lula da Silva, que vi discursar no estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo.
Menos ainda, que Lula daria posse para uma mulher e ex-militante da luta armada, Dilma Vana Rousseff. Ou que um negro se tornaria presidente dos Estados Unidos. Quem diria.
Nunca imaginei, antes do ano 2000, que todos os dez anos mais quentes registrados na história da meteorologia ocorreriam durante meu tempo de vida, e adulta, para não esquecer: 1998, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2009, 2010 e 2013. Nem, muito menos, que 2014 poderia bater o recorde e entrar para a lista em primeiro lugar. A ver.
Por falar em 2014: nunca imaginei que veria a seleção perder de 7 a 1 na Copa do Mundo no Brasil, a água da Grande São Paulo secar, uma nave pousar num cometa e Cuba reatar relações com os EUA.
Basta viver o bastante para ver de tudo acontecer --e o seu contrário. Ainda bem que temos imaginação para ver que tudo pode mudar.
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