JULIO JACOBO WAISELFISZ
TENDÊNCIAS/DEBATES
O Estatuto do Desarmamento deve ser revogado?
NÃO
Não é de hoje que os dados das diversas edições do Mapa da Violência vêm sendo utilizados para diversos fins, alguns esdrúxulos e controversos. Desde o primeiro deles, divulgado pela Unesco em 1998, diversos personagens e instituições têm utilizado os dados para o bem e para o mal. Atualmente, sobre esse tema --desarmamento-- para o mal.
O projeto de lei nº 3.722/12 visa anular os avanços do Estatuto do Desarmamento quanto à aquisição, posse, porte e circulação de armas e munições. Os setores que o defendem têm argumentado, utilizando frequentemente os dados do Mapa da Violência, que o estatuto fracassou, pois os homicídios aumentaram porque o cidadão "honesto" foi desarmado, sem possibilidade de defesa diante da criminalidade.
Segundo o Mapa da Violência 2014, em 2003, ano que o estatuto entrou em vigor, a taxa do país foi de 28,9 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2012, foi de 29. Assim, entre 2004 e 2012, período de vigência do estatuto, as taxas não aumentaram. Aumentavam antes de 2004, isto é, antes do estatuto que hoje querem derrubar. O panorama era de sistemático e forte crescimento das taxas de homicídio com um ritmo mais ou menos contínuo de 4% ao ano.
Em 2005, realizou-se o referendo do desarmamento para submeter à votação o artigo 35 que proibia a comercialização de armas e munições. Os mesmos personagens que hoje propõem a anulação do estatuto conseguiram liberalizar esse comércio.
Foi precisamente nesse ponto, e pela atuação desses mesmos personagens, que se reverte o processo de queda dos homicídios. Primeiro, entre 2005 e 2007, as taxas se estabilizaram em cerca de 26 homicídios por 100 mil, para reiniciar a espiral ascendente. Não foi pelo desarmamento, foi precisamente pela liberalização do comércio de armas financiado pelos mesmos setores.
Os números são eloquentes. Durante a vigência do que chamo de desarmamento pleno (de 2004, regulamentação do estatuto, e 2005, referendo) 443.719 armas foram recolhidas e as taxas de homicídio caíram pela primeira vez.
Por obra do retrocesso propiciado pelos resultados do referendo, no qual os brasileiros rejeitaram o fim da comercialização de armas e munições de fogo, de 2006 a 2010, durante o desarmamento esporádico, foram recolhidas apenas 71 mil armas, uma média de 14 mil ao ano, 4% do período anterior, e as taxas de homicídios estagnaram.
Parcialmente implementado em 2011, com parcos recursos e elevados níveis de oposição interna e externa, o Sistema Desarma, do Ministério da Justiça, conseguiu escassos resultados no que chamo de desarmamento combalido.
Até setembro de 2014 foram entregues 103 mil armas de fogo, uma média de 31 mil por ano, cerca de 15% do primeiro período da campanha. Sem avanços significativos nessa e em outras áreas, as taxas de homicídio voltam a crescer.
Em 2005, a pedido do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde, realizei pela Unesco uma avaliação dos resultados do primeiro ano de vigência do estatuto. Utilizando técnicas quase experimentais chegávamos à conclusão de que só em 2004 o estatuto possibilitou poupar a vida de 5.563 cidadãos que poderiam ter sido vítimas de homicídios por arma de fogo.
Não duvido que, nas atuais circunstâncias, a aprovação do mencionado projeto de lei acarrete um significativo incremento de nossas já elevadas taxas de homicídio. Utilizando as mesmas técnicas de 2005, a linha de tendência aponta que deveremos ter muitas mais mortes por armas de fogo.
O Brasil, sem conflitos aparentes de fronteiras, de etnias e de línguas, só pelo fato de ter armas à disposição, consegue matar mais gente do que muitos dos conflitos. E isso porque, enquanto mães choram, há quem lucre vendendo lenços.
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