Um em cada oito tem fome, artigo de José Graziano da Silva
de 23 de Outubro de 2012.
José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Artigo publicado no Valor Econômico de hoje (23).
Vasculhar a evolução da luta contra a fome é uma das responsabilidades da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Ela requer o mapeamento e o escrutínio dos acertos, erros e omissões - de governos e da cooperação internacional - diante da latejante abrangência de um mal que tem cura, mas mantém sua desconcertante presença no repertório das vulnerabilidades humanas do século XXI.
A fome não é um estoque, mas uma dinâmica histórica. Impulsionada por fragilidades locais e globais, ela sofre agora as determinações profundas da mais abrangente crise registrada no sistema econômico mundial desde 1930.
Não há escassez de oferta ou deficiência tecnológica que justifique a procissão de 870 milhões de pessoas com fome no atual estágio de desenvolvimento humano. 12,5% da população da Terra sobrevive em condições de subnutrição.
Os dados condensados na edição de 2012 do Estado da Insegurança Alimentar no Mundo, produzido em conjunto pela FAO, Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA), permitem dimensionar melhor os contornos, as singularidades e os desdobramentos dessa superposição de adversidades.
Entre outras coisas, constata-se a ampliação do fosso entre os que conseguem avançar em meio ao nevoeiro e a perda de fôlego adicional dos que já ocupavam uma posição caudatária na segurança alimentar. Avisos alarmantes, ao lado de revisões encorajadoras, convergem nessa travessia para um denominador inquietante: um em cada oito habitantes do planeta ainda passa fome em nosso tempo.
Não há escassez de oferta ou deficiência tecnológica que justifique a procissão de 870 milhões de pessoas com fome no atual estágio de desenvolvimento humano. É aberrante: 12,5% da população da Terra sobrevive em condições de subnutrição, como se o domínio ancestral das técnicas de semear e colher que pavimentou saltos tecnológicos sucessivos, hoje compatíveis com manipular o núcleo celular e ter um robô a passeio em Marte, não tivesse ocorrido.
O desfrute desigual desse percurso tem na persistência da fome uma pendência dramaticamente coagulada nos países pobres e em desenvolvimento. E já foi pior: em 1990 eram um bilhão de pessoas com fome, representando 18,6% da população.
Ainda é possível atingir a meta do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM) de reduzir à metade a proporção da população com fome até 2015, se ampliarmos os esforços e conseguirmos superar a desaceleração que começou por volta de 2006.
A radiografia estampada no informe da FAO adiciona um complicador a esse mundo plano feito de estatísticas médias. Na verdade, ela exibe uma perversa progressão, com arranques devastadores justamente ali onde gravitam os mais pobres entre os pobres.
Na África subsaariana, o contingente submetido ao torniquete da desnutrição só fez crescer desde 1990: saltou de 170 milhões para 234 milhões, afetando hoje a vida de 23% da sua população. No norte da África e no Oriente Médio, a fome passou a ameaçar 41 milhões de pessoas contra 22 milhões no início dos anos 90. As duas regiões juntas - Africa e Oriente Médio - somam 275 milhões de subnutridos em 2012 - 83 milhões a mais que em 1990!
Notícias melhores na América Latina e da Ásia. Nos dois casos, a fome recuou, respectivamente, de 57 milhões para 42 milhões de pessoas, de 13,6% para 7,7% da população regional; e de 739 milhões para 563 milhões, 23,7% para 13,9% da população regional. Somadas, as duas regiões reduziram em mais de 190 milhões o número de subnutridos entre 1990 e 2012.
É nessa intersecção de trajetos e velocidades que age a crise mundial, soprando o vento frio que congela as diferenças, ao contrário de equalizar as conquistas, como seria premente. Desde 2007, quando implodiu a ordem financeira mundial, os avanços na luta contra a fome praticamente estagnaram. Os novos números divulgados pela FAO encerram ponderações relevantes sobre esse divisor de ambiguidades.
Em primeiro lugar, mostram que no ciclo de crescimento que antecedeu a crise, os avanços da segurança alimentar foram, de fato, mais robustos - e rápidos - do que se calculara anteriormente. E onde o crescimento definha e o investimento agrícola se ausenta, a fome ocupa o vazio.
Em segundo lugar, apontam que a desordem financeira internacional, ao contrário do que se viu em outras crises até mais brandas, desta vez não sustentou uma espiral de fome e preços altos. Ainda que episódios traumáticos tenham ocorrido no início - e seu refluxo possa ter custado o sacrifício da qualidade pela quantidade da dieta, contribuindo para o aumento da obesidade - a existência de políticas sociais de transferência de renda e o fomento agrícola, principalmente da agricultura familiar, amorteceram significativamente a aterrissagem em muitos países, a partir de 2007.
Se não abriu as comportas da iniquidade, porém, a crise tende a congelar seus níveis intoleráveis. O desempenho modesto que se avizinha em relação aos ODM é o troco dessa fatura. Seria um equívoco, porém, inferir daí que basta aguardar a retomada do crescimento para se ter uma espécie de cola-tudo, que assumirá a tarefa de recompor mecanicamente o quebra-cabeça da segurança alimentar.
A persistência, quando não o agravamento da fome em algumas regiões pobres, e seu abrandamento em outras, sugere que o diferencial que conta de fato é o papel das políticas públicas na qualificação de um ciclo de expansão. No campo, por exemplo, para que a geração da riqueza seja um multiplicador de oportunidades e renda, é crucial incentivar o investimento e a produtividade que ampliem a oferta, poupem recursos naturais e incorporem justamente a maior fatia de pobres do planeta, 75% dos quais vivem junto à terra.
Esse é o salto que pode mover o passo seguinte da história. E é em torno dele que a FAO empenha seus esforços.
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