26 de novembro de 2013 | 2h 15
RUBENS BARBOSA - O Estado de S.Paulo
As revelações de que os EUA estão espionando não só governos, mas também dados de empresas e pessoais no mundo inteiro, até mesmo de cidadãos norte-americanos, causaram grande mal-estar e profundo desgaste para o governo Obama. Washington está agindo com base na seção 215 do US Freedom Act (Patriot Act), em muitos aspectos contrário à Constituição, que garante a inviolabilidade do cidadão norte-americano.
Com o Patriot Act o Executivo ganhou o poder de devassar a privacidade dos indivíduos e de entrar na internet mediante requisição judicial, nunca negada. Os grupos que lutam pelos direitos civis protestam contra o fato de as empresas americanas, por pressão do governo de Washington, estarem fornecendo dados pessoais, uma vez que ainda não existe uma lei que permita a proteção da vida privada dos internautas. Em fevereiro de 2012 o presidente Barack Obama propôs uma "declaração dos direitos de privacidade" (Privacy Bill of Rights), mas o Congresso resiste a se pronunciar a esse respeito. Com a inação do governo federal, os Estados locais aprovaram leis próprias de proteção da privacidade individual.
Nos EUA, a psicose coletiva causada pelo 11 de Setembro levou à proliferação de órgãos ligados a programas de combate ao terrorismo. Hoje são mais de 1.200, produzindo mais de 50 mil relatórios anuais e ocupando mais de 1 milhão de funcionários, dos quais 850 mil com credenciais de acesso a documentos ultrassecretos. Esse verdadeiro complexo segurança/militar está aparentemente fora do controle da Casa Branca, tanto no tocante à espionagem sobre outros países quanto acerca da bisbilhotagem de dados pessoais e de empresas na internet.
A Casa Branca tem repetido platitudes e respostas vagas, procurando distanciar-se da questão da espionagem sobre chefes de Estado. Em depoimento no Senado americano, o presidente da Agência Nacional de Segurança (NSA) informou que sempre manteve o gabinete presidencial ciente sobre todos os passos tomados pela agência, acrescentando que outros países também espionam os EUA.
A questão não é se os governos devem ou não coletar informação sobre outros países. Todos, de alguma maneira, o fazem e continuarão a fazê-lo.
Dentre os problemas causados por essas atividades, menciono dois. O primeiro é o dilema entre Realpolitik e ética. Se a espionagem deve estender-se também a países aliados e seus principais líderes, como ocorreu com Angela Merkel, na Alemanha, e Dilma Rousseff, no Brasil. Cabe indagar se espionar telefones dos líderes mundiais (até aqui foram relacionados 35 chefes de governo) seria o meio mais efetivo para obter informações e se o custo de eventuais revelações públicas compensaria esse risco. Levando em conta a reação púbica recente, parece que a resposta é não. O fato de os EUA terem uma superioridade tecnológica inigualável, permitindo a quebra de códigos de segurança em qualquer país, não quer dizer que devam fazer isso sem limites.
O segundo tem que ver com o acesso aos dados pessoais e de empresas via internet em terceiros países. Basta dizer que apenas na França, entre dezembro de 2012 e janeiro de 2013, 70 milhões de pessoas e algumas de suas principais empresas tiveram sua privacidade invadida. Embora a espionagem comercial não seja novidade (na década de 1990 o programa Echelon e a própria NSA foram denunciados por fazê-la), a escala e a sofisticação dessa ação intrusiva despertaram enorme preocupação em todos os países.
A União Europeia vem discutindo esse assunto há cerca de dois anos. No final de outubro os países-membros debateram, sem chegar a um acordo, medidas concretas para, de alguma forma, tentar limitar o acesso aos dados pessoais dos cidadãos europeus. Cedendo à forte pressão de empresas americanas (Yahoo, Google, Amazon e outras), a matéria ficou adiada para 2015. "É importante reforçar a confiança dos cidadãos e das empresas na economia digital. A adoção de um quadro geral de proteção de dados e da diretiva sobre a segurança cibernética é essencial para preservar o mercado único digital em 2015", lê-se no documento final do encontro. Esse paper, apresentado pela comissária da Justiça, Viviane Reding, aceita a possibilidade de os usuários permitirem ou não a utilização de seus dados pelo Google, Facebook, Yahoo e Amazon.
Com o Reino Unido, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, os chamados Five Eyes (cinco olhos), Washington mantém acordo de plena transparência e ampla cooperação em matéria de segurança e informação. Depois das notícias de violações de privacidade, França e Alemanha pediram aos EUA acesso a esse clube restrito. Embora sejam tradicionais aliados dos EUA, as chances de sucesso são poucas, em razão da desconfiança em relação a eles da parte de Washington.
O vazamento da espionagem sobre o governo brasileiro, a presidente Dilma, empresas e indivíduos causou natural reação do governo, a exemplo do que ocorreu em outros países. O Brasil, com o apoio da Alemanha, está propondo uma nova regulamentação de governança global para proteger dados pessoais. Para tentar reduzir nossa vulnerabilidade, reconhecida até pelo ministro Celso Amorim, o governo propôs algumas iniciativas no âmbito da legislação sobre o Marco Civil da Internet, algumas delas irrealistas pela falta de recursos tecnológicos e financeiros para implementá-las.
Como assinalou o professor Silvio Meira em recente artigo na revista Interesse Nacional, o Brasil tem de estabelecer uma estratégia de informação que dê conta de toda a cadeia de valor do que há de mais importante na sociedade de hoje, como base para o conhecimento - dados e informações. Uma das consequências dessa falta de estratégia é que nunca geramos capacidade nacional, de classe global, para a solução de problemas desse tipo.
PRESIDENTE DO CONSELHO
DE COMÉRCIO EXTERIOR DA FIESP
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