Em uma sociedade como a brasileira, Dia da Consciência Negra se empobrece com a insistência em reivindicações baseadas na cor da pele
Um missionário americano, R.H. Stone, visitava a África Ocidental em meados do século 19, quando se deparou com a cidade de Abeokuta, no território que hoje corresponde ao da Nigéria.
"O que contemplei", conta, "destituiu minha mente de muitos erros a respeito da África. A cidade (...) tem aproximadamente 200 mil habitantes. Em vez de selvagens preguiçosos e nus, vivendo apenas dos frutos da terra (...), lá viviam pedreiros, ferreiros, carpinteiros, negociantes (...) Fabricam navalhas, espadas, estribos. As mulheres fiam, tecem, negociam..."
Ao ler essas linhas, muitos brasileiros ainda hoje provavelmente sentirão a surpresa que acometeu o religioso cerca de 150 anos atrás. É citando esse autor que um historiador da arte africana, Robert Farris Thompson, inicia "The Flash of The Spirit" ("O Lampejo do Espírito"), livro de 1983.
A narrativa merece ser lembrada no Dia da Consciência Negra, que hoje se comemora em várias cidades. Ainda que o feriado seja ocasião para reivindicações específicas dos afrodescendentes, há mais a considerar. Em primeiro lugar, o desconhecimento que persiste, no Brasil, diante de uma tradição cultural que a todos diz respeito.
Conforme avançam as discussões sobre discriminação racial e sobre cotas para descendentes de africanos --de modo mais injustificável do que nunca, quer-se estendê-las ao Congresso--, é como se uma mitologia substituísse a outra.
Houve, de início, a lenda de um "branqueamento" gradual e "desejável" da população negra, absorvida sem maiores traumas numa sociedade que a oprimiu.
Veio, em seguida, o enaltecimento de uma "herança negra", de uma "cultura negra", como se não houvesse várias, e adversas entre si, na própria população que o tráfico arrastou às costas brasileiras.
O célebre sincretismo religioso, que teria unido tradições católicas e culto africano numa mesma fé, tem sido objeto de versões simplificadas. Por força de guerras e conquistas, também as divindades dos caçadores de escravos do Daomé misturaram-se às dos iorubás em diáspora, tendo de haver-se ainda com a "jihad" muçulmana dos fulani mais ao norte. Um sincretismo africano, portanto, precedendo e somando-se ao cristianizante.
Complexidades culturais desse tipo não se resumem à bandeira de uma única cultura "negra"; nem a "consciência negra" tem seus limites na reivindicação antiuniversalista de prerrogativas especiais segundo a cor da pele.
A consciência negra será brasileira, e será universal, ou não será consciência de nada, exceto do particularismo de alguns militantes.
O feriado de hoje ganha ao ser entendido dessa perspectiva --que é a de uma sociedade complexa, com direitos iguais para todos e com culturas variadíssimas, que, misturando-se e conhecendo-se, enriquecem cada um de nós.
Folha de S.Paulo, 20/11/2013
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