20 de fevereiro de 2014 | 7h 35
- O Estado de S. Paulo
Sob o risco de repetir o que já foi dito aqui, neste mesmo espaço, há poucos meses, vale recapitular o seguinte:
1) As manifestações endêmicas que vêm eclodindo no Brasil há quase um ano carregam componentes que vão além da política - e que, portanto, não se esgotam nas categorias mais convencionais da ciência política.
2) Elas disparam conflitos que não cabem no conceito de luta de classes, ainda que empregado de maneira flexível e pouco ortodoxa.
3) Elas se caracterizam, indiscutivelmente, por uma linguagem específica. São regidas por um código de expressão que vai do uso de cartazes - feitos sob medida para as câmeras da imprensa - às indumentárias e coreografias padronizadas. Concentram um conjunto de signos que, por sua vez, se ordenam como feixes de sentido que se opõem a outros conjuntos de signos (os signos do poder e os signos da mercadoria). Nas passeatas, enquanto a maioria ergue mensagens de repúdio a políticos e autoridades, outros poucos investem contra agências bancárias, lojas de automóveis ou mesmo contra a tropa de choque. O que temos aí são signos se batendo contra outros signos.
4) Na sua vertente mais violenta, entra em cena o signo black bloc. O figurino tenta espelhar a farda dos policiais, mas com sinais invertidos. Admite coturnos, além de capacetes, mas recusa o que é oficial e flerta com a clandestinidade e a ilegalidade: a máscara para se proteger do gás lacrimogêneo ou simplesmente para esconder o rosto. O black bloc é uma fantasia em ação (e o termo fantasia, aqui, tem mais de um sentido, ou mais de dois).
5) O repertório sígnico mobilizado nas manifestações de hoje descende de uma história de protestos que alcançaram grande visibilidade na Europa e nos Estados Unidos a partir dos anos 1960. Das marchas de 68 em Paris e dos comícios contra a Guerra do Vietnã em Washington, essa história prosseguiu com os levantes antiglobalização nas principais capitais do mundo desenvolvido nos anos 80 e 90 até chegar à atualidade, com a Primavera Árabe e as ocupações de praças espanholas e até de Wall Street, em Nova York. Os protestos de hoje afloram como espetáculo. Eles falam a língua visual do espetáculo e essa língua já é bem conhecida dos telespectadores de todo o planeta.
6) Portanto, além de eventos políticos, as manifestações que obstruem logradouros e vias públicas para ferir o nervo do poder ganham lugar na arena da cultura, disputando espaço, aí, com outros fatos, outras notícias, outras formas de aglomeração de multidões (de concertos de rock a campeonatos de futebol). Elas são eventos políticos que se revestem também de um caráter estético.
7) E aqui vem o ponto problemático: a adesão da juventude a essas jornadas turbulentas se dá tanto pela face política quanto pela face estética dos movimentos em curso.
A grande maioria dos analistas e dos comentadores tem recusado veementemente a hipótese de existência dessa segunda face dos protestos (a face estética). Essa recusa os leva a uma incompreensão parcial do que se passa. Com isso perdemos todos. Se a sociedade e o Estado não se derem conta de que a onda de gritaria e de tumulto que se avoluma não é meramente uma avalanche de cunho reivindicatório, mas também uma erupção de caráter cultural, não haverá superação possível.
Esse sapo aí não pula apenas por precisão - ele pula também por boniteza. Não é por necessidade extrema que milhares de novos atores vêm engrossando os protestos no Brasil. Não é porque passam fome. É também por desejo - atenção a essa palavra, que já está nas ruas há um bom tempo, mas não é vista nem ouvida. É por desejo de afirmar uma identidade oposta à identidade dos que governam. Desejo de existir, de ser visto, de fazer diferença. O que move as passeatas sígnicas não é a miséria, não é o trabalho insalubre em minas de carvão; é antes o impulso de tomar parte numa cena que seja capaz de roubar a cena da velha política.
O ato de levantar-se não brota de um cálculo cerebrino ou de uma negociação programática, mas de uma aspiração de sair da caixa, de sair da passividade, de não deixar barato. O despertar não é mais ético do que estético. Segue uma demanda da sensibilidade e da emoção (não apenas da razão). Rejeita a feiura generalizada e vislumbra outra beleza possível - ainda que as manifestações de rua, em si, descambem desgraçadamente para o abominável.
Em tempo: dizer que há uma face estética nas jornadas e no engajamento que elas suscitam não significa autorizar ou glamourizar a selvageria black bloc, assim como não significa dizer que as passeatas sejam elas mesmas obras de arte. Por favor. Significa apenas reconhecer que há muita gente que, diante da pequenez das engabelações oficiais, busca um sentido maior para sua existência. Com esse sentimento vai às ruas e confraterniza (pelo sensível) com outros manifestantes. Isso é, também, um movimento estético, embora não seja arte.
A propósito, ou mesmo sem querer, Michel Foucault falou de uma "estética da existência", mas não nos percamos por aí. Basta saber que na existência de uns e outros mora inevitavelmente algo que tem parte com a estética. Basta lembrar que as leis da estética explicam parte da retórica política e, principalmente, as paixões políticas. Isso vale tanto para o bem como para o mal. O nazismo estetizou o Estado e assim conseguiu a obediência reverencial dos cidadãos que se perfilavam diante de Hitler como se fossem soldados imantados. Hoje os marqueteiros estetizam os candidatos para torná-los parecidos não com obras primas, mas com sabonetes que não limpam nem fazem espuma. E conseguem milhões de votos.
Identificar o componente estético nas manifestações que hoje inspiram mais repulsa do que fascínio, enfim, não tem nada que ver com idolatrá-las ou estimulá-las. Isso é apenas necessário para que possamos entendê-las - a elas e à sociedade que as gerou.
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e ESPM.
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