Não faz muito, os fins justificavam os meios usados para realizar as revoluções e a construção da igualdade justificava o sacrifício da liberdade. Mais recentemente, os propósitos sociais foram sacrificados em nome da plena liberdade comercial.
Para surpresa, as populações foram às ruas manifestar radical descontentamento com o estado das coisas. Mas esses movimentos têm carecido de objetivos transformadores e utópicos claros. Passam a impressão de que seus diversos objetivos parciais não carregam propósitos de transformação social. É como se a revolução estivesse no meio e não nos fins. Uma revolução sem classe social vanguardista, sem líder condutor, sem partido, realizada pela desilusão, descontentamento e desespero com a realidade atual, sem proposta de outra realidade a ser colocada no lugar. Por isso, os movimentos não se enquadram nos modelos conhecidos.
É por desconhecer o que acontece que surge a tentação de negar a existência da revolução em marcha que se caracteriza, sobretudo, pela mobilização de pessoas pela internet. Com os instrumentos tradicionais de análise, é impossível entender este processo e nada indica que novos instrumentos lógicos estejam surgindo entre os intelectuais ou os políticos.
A perspectiva é de um longo tempo de instabilidade social, decorrente não apenas de raras marchas de 100 mil, mas por cinco mil marchas de 200 pessoas. Número incapaz de derrubar governos, mas suficiente para desorganizar a estrutura social sem ameaçar a estrutura política.
O que caracterizavam as revoluções com os velhos propósitos era desorganizar o tecido social para mudar o poder político e implantar um novo projeto social. Agora é extravasar o descontentamento social com centenas de pequenas reivindicações para mudar as prioridades.
Neste clima de uma revolução com propósitos diluídos, conforme os grupos que se manifestam, sem um propósito de classe nem líderes partidários surgirá a tentação da repressão como forma de combater os movimentos. Mas os movimentos se organizam por uma forma desorganizada, quase espontânea, em que cada pessoa tem uma trincheira em casa sob a forma de computador conectado. As forças da repressão não terão êxito porque foram organizadas para os velhos padrões. Da mesma forma que os exércitos tradicionais perderam guerras para a guerrilha tradicional, a polícia tradicional perderá para esta guerrilha cibernética.
Resta aceitar os movimentos e tentar entender as causas dos descontentamentos, dos desesperos, dos desencantos. E de preferência fazer isto contente, porque esta revolução que não entendemos é a manifestação do fracasso do que se entendia ser a utopia, e esperando e observando o que está acontecendo e que não cabe dentro de nossos esquemas. Até que, provavelmente, de dentro dos próprios “neo-revolucionários”, surjam alternativas sociais utópicas e convincentes.
O Globo, 8/2/2014
Cristovam Buarque é professor da UnB e senador pelo PDT-DF.
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