RIO DE JANEIRO - Nelson Rodrigues, numa crônica dos anos 60, falou de um inglês de passagem pelo Rio. Ao lhe perguntarem que característica identificava no brasileiro, o visitante espiou em volta e declarou: a cordialidade. Referia-se às pessoas que, nas ruas, se dirigiam umas às outras como se se conhecessem, fossem íntimas e se estimassem, embora nunca se tivessem visto.
Nelson fez disso um artigo, mas talvez não partilhasse da ideia do inglês --ou não de todo. Porque, em outra crônica, pouco depois, escreveu: "O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro".
Mas se não sabíamos como era o brasileiro por dentro, não é por falta de exemplos que estamos deixando de saber. Nosso passado recente inclui prisioneiros metralhados às centenas numa cadeia, homens fritando seus semelhantes em "micro-ondas" nas favelas ou abatendo helicópteros com fuzis. Chacinas são vistas como faxinas. Outros degolam companheiros de cela, chutam cabeças de adversários caídos nas arquibancadas, agridem moradores de rua e gays e vão às ruas para destruir, queimar, matar.
Conheci Santiago Andrade, o cinegrafista morto pelos "black blocs". Durante anos, veio semanalmente a meu apartamento, com o produtor João Paulo Duarte, para gravar uma coluna diária que eu fazia na TV Band News. Era grande profissional e pessoa. Insistia no melhor enquadramento, melhor som, melhor luz. Se, por minha culpa, tivéssemos de refazer cada coluna duas ou três vezes, era com ele mesmo.
Santiago foi vítima desses brasileiros que estão pondo suas trevas para fora. Há algo de monstruoso em quem dispara um rojão em meio a uma multidão, indiferente ao que pode acontecer. Alguém fracassou na formação desses indivíduos. Não somos cordiais, somos cruéis, e é bom que o mundo se cuide a nosso respeito.
Folha de S.Paulo, 12/2/2014
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