SÃO PAULO - Hoje vou discordar de meu amigo e mestre Janio de Freitas. Até admito que a liberdade de expressão não seja absoluta. Penso que gritar "fogo!" num teatro lotado quando não há incêndio deve constituir ilícito, mas, tirando essas situações em que uma declaração objetivamente falsa representa perigo real e imediato, tudo o mais deve ser tolerado. Isso inclui os discursos falsos que não trazem ameaça premente e os verdadeiros, ainda que concretamente danosos.
Se não for assim, a liberdade de expressão não faz sentido. Ninguém precisa de garantias para falar mal do câncer ou pedir a paz mundial. Como afirmou o linguista e ativista de esquerda Noam Chomsky, "se você é a favor da liberdade de expressão, isso significa que você é a favor da liberdade de exprimir precisamente as opiniões que você despreza".
Daí decorre, creio, que a democracia, ao contrário do que se apregoa, deve, sim, admitir pregações nazistas, racistas e antidemocráticas. No instante em que o sujeito tenta colocar essas ideias em prática, aí é hora de chamar a polícia. Existe, afinal, uma fronteira mais ou menos natural entre o discurso e a prática. É melhor aproveitá-la do que atribuir a alguém o poder de arbitrar entre o que é ou não uma declaração aceitável.
E por que dar tanto espaço para gente que no fundo quer acabar com a tolerância? A liberdade de expressão, ao assegurar que todos os temas possam ser debatidos sob todos os ângulos, catalisa a necessária reciclagem dos consensos sociais. Num passado não muito remoto, queimar infiéis, prender adúlteros e manter escravos eram ideias respeitáveis que tinham o amparo da opinião pública.
Se você acredita que, no longo prazo, a razão tende a prevalecer e acha isso bom, não há como não defender uma versão forte da liberdade de expressão. O preço a pagar, que é ouvir tolices como as proferidas pela apresentadora de TV Rachel Sheherazade, é quase uma pechincha.
Folha de S.Paulo, 11/2/2014
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