15 de junho de 2010

A outra face da liberdade



Fornecer dados pessoais constitui-se em rotina sempre mais comum para o brasileiro. Na internet, em compras a crédito, programas de fidelização e em tantas outras ocasiões, as solicitações de informações pessoais são corriqueiras e cada vez mais minuciosas. Em termos práticos, perde-se o controle sobre as informações pessoais logo após fornecê-las. Pouco (ou nada) se sabe sobre sua utilização; se serão repassadas para terceiros ou para quais fins serão empregadas.

Até mesmo o acesso às próprias informações - indispensável para conferir se a informação armazenada ao menos é correta - mostrase claudicante, pela pouca praticidade da ação de habeas data. Essa espécie de "assimetria informacional", pela qual o cidadão perde o controle sobre suas informações, favorece os que realizam o tratamento de informações pessoais.

Estes - governos e entidades privadas - tornam-se assim capazes de rotular cada pessoa a determinados padrões de comportamento e a previsões de hábitos de consumo. A autonomia é debilitada, favorecendose as discriminações, principalmente pelo tratamento de seus dados sensíveis (associados a características psicofísicas). A sujeição do indivíduo aos desígnios da tecnologia não é intransponível.

Instrumentos jurídicos que procuram assegurar à pessoa o controle de seus dados existem há um bom tempo em diversos países e compõem as denominadas leis de proteção de dados pessoais. Modelos legislativos garantem o processamento de dados segundo certos princípios, com finalidade determinada e com o direito de acesso efetivo e oposição pelo interessado.

Mais ainda, o tratamento de dados pessoais costuma ser supervisionado por uma agência com poderes para regular e inspecionar a utilização dessas informações. No Brasil, o tema é tratado pela ação de habeas data, cuja estrutura não é condizente com a dimensão atual do problema da informação pessoal, e pelo Código de Defesa do Consumidor, limitadamente às relações de consumo e ao fornecimento de crédito.

Há indicativos, porém, de mudança. Na América Latina, alguns países, como Argentina e Uruguai, já possuem normas específicas e modernas a respeito. Além disso, no Brasil, encontra-se em fase final de estudos pelo Executivo federal um anteprojeto de lei sobre proteção de dados pessoais.

Uma lei abrangente e contemporânea é o elo que falta para a tutela do cidadão e para a deflagração de várias outras iniciativas, legislativas ou não, que importam no tratamento de dados pessoais - tais como o novo Registro de Identidade Civil (RIC), o monitoramento de automóveis, a identificação por meios biométricos nas mais variadas ocasiões e outras mais. O anteprojeto em discussão insere-se em uma atualíssima agenda de renovação normativa que procura redefinir o estatuto jurídico da informação no Brasil. Basta lembrar os projetos de lei referentes ao Marco Civil da Internet, ao Acesso à Informação Pública e à reforma da Lei de Direitos Autorais.

Neste panorama, a tutela dos dados pessoais assume a função de traduzir, na atualidade, a nova face da liberdade - a liberdade informática, na feliz expressão de Vittorio Frosini. Afinal, a privacidade, nos dias atuais, não é mais o direito a não ser importunado, revelando-se, de maneira mais ampla e dinâmica, no poder de controle dos dados pessoais.

As relações existenciais, afetivas, comerciais e profissionais cada vez mais se desenvolvem por meios informatizados - para os quais é imprescindível o fornecimento de informações pessoais. Por isso, franquear ao cidadão brasileiro instrumentos de efetivo controle sobre o uso e a integridade de suas informações torna-se mecanismo de garantia da liberdade, tendo em conta o papel predominante da informação para as escolhas individuais. Para tanto, afigurase indispensável uma lei geral de proteção de dados pessoais, a nova face da privacidade.

O Globo

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GUSTAVO TEPEDINO é professor da Faculdade de Direito da Uerj.

DANILO DONEDA é consultor da Unesco/MCT.

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