O interior não é mais tão tranqüilo
Violência, comum nas grandes cidades, agora avança sobre localidades menores
MIGUEL NÍTOLO
Uma típica cena noturna nas pequenas cidades, as cadeiras nas calçadas com a vizinhança reunida em alegres bate-papos, um traço forte da cultura popular, pode estar começando a sair de cartaz. E não é por falta de assunto, já que motivos para conversas há muitos. Um deles, cada vez mais presente, é a violência, que campeia nas grandes metrópoles e agora, assustadora, caminha lépida na direção das localidades menores.
As notícias divulgadas pela mídia e as estatísticas das secretarias de segurança dos estados já não deixam dúvidas quanto a isso. Tanto que as residências de hoje estão perdendo contato com as de ontem, quando portas e janelas eram livres de proteção, os muros, quase sempre baixos, serviam apenas como divisas, alarmes eram coisa de bancos e bastavam trancas e cadeados para dar tranquilidade aos moradores. O quadro, atualmente, é bem diferente. A proliferação do uso de câmeras, cercas elétricas, grades, portões eletrônicos e segurança particular, entre tantos outros artifícios empregados pelas pessoas para se resguardar da ação de malfeitores, vai deixando às claras o tamanho da insegurança vivenciada pela população.
A violência está avançando em todas as suas modalidades e chegando a lugarejos onde, até recentemente, só se ouvia falar de “ladrões de galinha”, gatunos habituados a ingressar nos quintais para afanar bens de pequena monta, como botijões de gás e roupas no varal. Agora, as cidades interioranas estão se habituando a ver e a ouvir falar em suas comunidades de assalto a mão armada, roubo de carro, invasão de domicílio, latrocínio, prática do “chupa-cabra” (furto em terminal de caixa eletrônico mediante cópia fraudulenta de cartão) e até sequestro-relâmpago.
Como um rastilho de pólvora, a criminalidade vai estendendo suas garras e mudando cenários. Por exemplo, no ano passado, o município paulista de Taboão da Serra, de 227 mil habitantes (população estimada em 2009) e integrante da região metropolitana de São Paulo, registrou, segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado, a ocorrência de 21 homicídios dolosos (34 em 2008), 1.413 furtos (1.658), 2.119 roubos (2.201) e 1.298 furtos ou roubos de veículos (1.092). Dois outros municípios de porte semelhante, Praia Grande, na Baixada Santista (250 mil habitantes), e Marília, no oeste do estado (226 mil), amargaram no mesmo período, respectivamente, 38 e 6 homicídios dolosos (33 e 10 em 2008), 5.184 e 3.732 furtos (4.188 e 3.103), 3.555 e 497 roubos (2.742 e 374) e 1.531 e 162 furtos ou roubos de veículos (1.471 e 163). Vejam-se ainda os casos dos municípios gaúchos de Cachoeirinha (região metropolitana de Porto Alegre) e Bagé, no sul do estado, ambos com população a caminho dos 120 mil habitantes. De acordo com estatísticas da Secretaria de Segurança do estado, o primeiro anotou, em 2009, a ocorrência de 19 homicídios, 2.125 furtos, 912 roubos e 725 furtos ou roubos de veículos, números que, no caso de Bagé, cravaram em 11, 2.508, 351 e 96. Desgraçadamente, a violência está, hoje, em todos os lugares.
Esses totais oscilam para mais ou para menos de um ano para outro, mas, independentemente das nuanças, amedrontam quando colocados diante de dados de outros tempos ou dos índices mundiais. Com isso, o bordão de que o interior é uma ilha de sossego, a despeito da quietude da vida ali, especialmente nas cidades menos populosas, vai, vagarosamente, perdendo força. Em março último, o Instituto Sangari, de São Paulo, fez a apresentação do estudo “Mapa da Violência 2010 – Anatomia dos Homicídios no Brasil”, de autoria do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, diretor de pesquisa da entidade, que retrata a situação e a evolução dos crimes contra a vida no período que vai de 1997 a 2007. Parte de uma série que teve início dez anos atrás e que chega, agora, à décima edição, o levantamento revela a realidade nua e crua da violência por estados, capitais, regiões metropolitanas, municípios, faixas etárias, sexo, raça/cor e gênero. Waiselfisz mostra que os crimes aumentaram no interior, porém observa que a taxa de homicídios estaria caindo no país. Ele ressalta que os índices de assassinato cresceram até 2003 a uma taxa superior a 5% e que, de lá para cá, vêm experimentando uma inédita propensão ao declínio.
Migração
O pesquisador do Instituto Sangari descobriu que na década estudada, em alguns estados como Acre, Espírito Santo, Pernambuco e Rondônia, o número de homicídios se manteve estagnado, ao contrário do que aconteceu em Alagoas, Maranhão e Piauí, entre outros, em que ele cresceu. Com isso, pode-se dizer, a situação do Brasil permaneceu inalterada, com uma taxa de 25,4 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, em 1997, e de 25,2, em 2007. No entanto, se as taxas recuaram nas capitais, nesses mesmos dez anos, de 45,7 para 36,6, assim como se deu nas dez regiões metropolitanas (de 48,4 para 36,6), no interior elas saltaram de 13,5 para 18,5. Os dados levantados por Waiselfisz vieram dar confirmação ao fenômeno da interiorização da violência que se manifesta por meio do deslocamento dos polos dinâmicos da criminalidade das capitais e regiões metropolitanas para outras partes do país. Isso não significa, vale ressalvar, que o número ou taxa de homicídios fora das grandes metrópoles seja maior que nos grandes centros urbanos, mas que seu crescimento se concentra agora no interior.
Outro ponto destacado pelo Mapa da Violência 2010 é que a partir da década de 1980 o aumento dos casos de assassinato passou a se concentrar entre jovens de 15 a 24 anos de idade. Há 30 anos, a taxa de homicídios entre os indivíduos nessa faixa etária girava em torno de 30 casos para cada grupo de 100 mil jovens, índice que se elevou para 50,1 já em 2007.
Contudo, cabe perguntar, por que a violência começa a ganhar corpo no interior? Na verdade, o que estaria ocorrendo é uma migração da criminalidade, como explica Tião Santos, membro do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp) e coordenador do Viva Rio, uma organização não governamental fundada em 1993 no Rio de Janeiro e, desde o início, direcionada para o trabalho de campo, a pesquisa e a formulação de políticas públicas com o objetivo de promover a cultura da paz e o desenvolvimento social. “Para nós, a violência é comparada a uma epidemia que se transmuta, se desloca, chega aos lugares mais distantes e às mais diversas camadas sociais.” Ele cita como exemplo dessa mobilidade a migração para as cidades da Grande Rio da criminalidade de algumas favelas da capital fluminense ocupadas pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), modelo de segurança que começou a ser implementado pelo governo do Rio de Janeiro no final de 2008.
O aumento da criminalidade no interior pode, com efeito, estar atrelado ao sucesso de políticas públicas de segurança em alguns estados. “São Paulo apresentou um declínio substancial nessa área entre os anos de 2000 e 2008, tendo, com isso, influenciado os números nacionais”, afirma o doutor em ciências sociais José Maria Pereira da Nóbrega Júnior. “O criminoso é um agente racional. Ele migra para os lugares onde as oportunidades, segundo sua visão, são maiores”, sugere. Nóbrega relata que, nesse aspecto, o nordeste trilha um caminho inverso ao tomado pelo sudeste, “fato que se tem refletido nas altas taxas de homicídios amargadas pelo Brasil, apesar da melhoria das condições socioeconômicas da região”. Ele destaca que a Bahia teve um incremento de, aproximadamente, 420% nos números absolutos de homicídios entre 1999 (913 casos) e 2008 (4.709).
Para o sociólogo Waiselfisz, alguns fatores – que estariam atuando de maneira simultânea – devem ser responsabilizados pela violência que começa a tirar a tranquilidade dos municípios menores. Ele cita os investimentos realizados nas capitais e nas grandes regiões metropolitanas no aparelhamento dos sistemas de segurança pública, que ganharam prioridade com o novo Plano Nacional de Segurança Pública, de 1999, e o Fundo Nacional de Segurança Pública, instituído em janeiro de 2001, medidas que, segundo ele, “estão dificultando a ação dos criminosos”. E relaciona, também, os numerosos polos de desenvolvimento em diversas partes do país, que chamam investimentos e motivam a migração para lá de levas de pessoas em razão da expansão do emprego e da renda. “Pelas mesmas razões, e devido à ausência de políticas de proteção, esses lugares acabam atraindo a criminalidade.” Além disso, de acordo com Waiselfisz, a melhoria na cobertura dos sistemas de coleta de dados de mortalidade, principalmente fora das grandes metrópoles, diminuiu a subnotificação que sempre existiu nessa área. “Em outras palavras, fenômenos que antes não eram registrados passaram a incidir nas estatísticas”, completa.
Injustiça e violência
O psicólogo Sergio Luis Braghini, doutor em ciências sociais e docente dos cursos de pós-graduação em sociopsicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), faz algumas ressalvas em relação aos alegados polos de desenvolvimento. Ele começa afirmando que, se é um fato, a motivação para o aumento da violência não está no crescimento econômico, mas na forma como ele é conduzido. Para alguns poucos, segundo ele, o fenômeno gera riqueza em demasia e, para outros, um rendimento ínfimo, e a injustiça pode levar a uma violência ainda maior. “Hannah Arendt, teórica política, escreveu que a fúria não ocorre quando a condição social é impossível de modificar e sim quando há razões para crer que ela poderia ser mudada, mas não é, uma situação em que nosso senso de justiça é injuriado.” Braghini alerta para o fato de que “se um empreendimento é levado para uma cidade do interior porque há sob essa iniciativa o interesse em pagar menos pela mão de obra local, seguramente os índices de violência não irão recuar”.
A questão é que, como lembra João Trajano Sento-Sé, cientista político e coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o aumento da criminalidade violenta pode estar associado à instauração de uma nova ordem para a qual determinadas regiões em franco crescimento não estão preparadas. Ele salienta que “o velho e bom Émile Durkheim”, um dos pais da sociologia moderna, “já ensinava que mudanças bruscas, mesmo que sejam positivas e envolvam maior circulação de bens, tendem a causar perturbações sociais que incidem sobre o aumento de comportamentos anômicos, o crime entre eles”.
Já o professor Guilherme Assis de Almeida, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP), tem uma visão bem particular do problema. Ele afirma que a violência tem ciclos. “Nas capitais existiu um conjunto de medidas de prevenção e repressão que realmente funcionou. Nas cidades do interior, não, e agora elas se deparam visivelmente com uma situação que só estava sendo gestada, mas já começa a mostrar sua face mais cruel.” Autor do livro Direitos Humanos e Não-Violência, publicado pela Editora Atlas, e de Violência Urbana, série Folha Explica nº 57, escrito em coautoria com o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, Almeida adverte que é um erro do governo federal privilegiar apenas as áreas metropolitanas, tendo em vista que a questão da violência está em toda parte. “É de fundamental importância ter em mente que segurança não é só promover a aquisição de viaturas e equipamentos e a distribuição de verbas. É, também, um trabalho de articulação do poder público e dos órgãos governamentais em seus três níveis (União, estados e municípios), do Estado com a sociedade civil e da sociedade civil entre si.” Almeida observa que ações de articulação são muito efetivas e consomem menos verbas.
Sento-Sé, da Uerj, faz aqui uma censura. Ele argumenta que a segurança pública foi negligenciada durante décadas no Brasil. “A elite política não se interessava por ela, assim como as universidades, as elites econômicas e os formadores de opinião. Quando o país começou a acordar para a magnitude que o problema vinha ganhando, estava totalmente despreparado para lidar com ele.” O cientista político salienta que “foi apenas a partir do início da década que a União começou a assumir uma parcela de maior responsabilidade nesse campo”.
Desigualdades
O Brasil tem 3% da população mundial, mas registra 11% dos homicídios. Afinal, o que está acontecendo com a nação do carnaval, do futebol e da alegria, em que a escalada da criminalidade (em todas as suas modalidades) não arrefece? “Vale lembrar os altos índices de desigualdade social em que vivemos, sobretudo nas cidades grandes e de médio porte”, sugere Sento-Sé. Ele sustenta que a literatura internacional e nacional ressalta que esse é um forte vetor que alimenta os índices de violência criminal.
Embora se verifiquem indícios de melhora em alguns indicadores sociais nos últimos anos, o cientista político alerta que nossa dívida social é muito grande e o ritmo de reversão desse quadro é bastante lento. “O Brasil compartilha o horizonte cultural de extrema violência da América Latina”, assinala o sociólogo Waiselfisz. “Um estudo recente revelou que a taxa de homicídios da região é a maior do planeta: 19,9 para cada 100 mil habitantes, contra 1,2 na Europa, 1,3 na Oceania e 2,1 na Ásia.” O diretor de pesquisa do Instituto Sangari relata que foram analisados os indicadores de 83 países, e quatro das cinco nações mais violentas são desta parte do mundo (El Salvador, Colômbia, Venezuela e Guatemala). “Seis dos dez primeiros lugares também pertencem ao continente (aqui incluímos o Brasil). Assim, somos parte de uma cultura que pouco ou nada valoriza a vida humana, e onde os conflitos são levados a suas últimas consequências com o extermínio do próximo.” O professor Almeida, da USP, pensa de modo semelhante. A seu ver, a violência exacerbada que se verifica hoje no Brasil tem os “conflitos intersubjetivos” como causa. Há, segundo ele, a crença equivocada de que a violência é a solução para os problemas e as tensões de relacionamento de toda natureza.
Diante dos fatos cresce a convicção de que é preciso lançar mão de uma espécie de mutirão contra a criminalidade que envolva todas as forças da sociedade. Alguns especialistas sustentam mesmo que as cidades precisam reconhecer que a violência é também um problema delas e que, portanto, as prefeituras deveriam participar decididas dessa cruzada. “Talvez pudéssemos olhar para a comunidade mais imediata, para a esfera administrativa municipal e, dali, começar a tomar medidas que, a médio e a longo prazo, nos fariam perceber o caráter mais abrangente do problema”, analisa o sociólogo José dos Reis Santos Filho, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Políticas Alternativas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Ele afirma que são raros os diagnósticos pormenorizados da criminalidade nos municípios e argumenta que esses conhecimentos teriam a virtude de permitir a elaboração de planos locais de segurança e cidadania.
A história recente das estratégias de enfrentamento da violência evidencia que a solução passa, necessariamente, pelo âmbito municipal. “O Fórum Metropolitano de Segurança Pública, integrado por 39 prefeituras municipais e ligado à secretaria executiva do Instituto São Paulo contra a Violência, foi um dos eixos explicativos centrais para as quedas sistemáticas nas diversas taxas indicativas de violência na região metropolitana de São Paulo”, esclarece Waiselfisz. Diadema, na Grande São Paulo, é um município sempre lembrado pela forma como a violência é combatida ali por meio da aplicação, desde 2001, de políticas públicas na área da segurança com cidadania. Foram registrados, no ano passado, 57 homicídios, uma redução de 84,76% em relação a 1999, ano que marcou o pico da violência na cidade, com 374 ocorrências. E a queda do número de eventos dessa natureza em 2009 em relação a 2008 foi de 30,49%. “A continuidade das políticas públicas tem demonstrado resultados positivos a cada ano”, diz José Francisco Alves, secretário de Defesa Social de Diadema. “Com a adoção de novos projetos do Pronasci [Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania], esperamos que a violência diminua ainda mais”, pontifica.
Pensamento Brasileiro
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