8 de agosto de 2011

A grande batalha é cultural


08 de agosto de 2011
Educação no Brasil | O Globo | Opinião 




JULIO MARÍA SANGUINETTI

O Uruguai avançou notavelmente nestes 25 anos de restauração democrática. Há mais telefones que habitantes, relegando ao folclore cidadão a penúria do aspirante a um aparelho, que mendigava pacientemente o serviço. Uma aposentadoria, antes, também era um processo burocrático penoso, e hoje é um expediente que se faz via internet - existe uma história pessoal e até a possibilidade de uma economia individual que assegure melhor o futuro.
Se consideramos as obras públicas, um simples olhar para a torre da Antel, o porto ou o aeroporto de Montevidéu nos fala de um Uruguai inserido no mundo contemporâneo, que aterrissou também na Zonamerica, onde modernos edifícios abrigam dezenas de empresas globalizadas numa pequena cidade de ar californiano.
Desde 1985, quando se inaugurou o primeiro shopping, e pouco depois, os free shops da fronteira, o mundo do comércio internacional impôs sua estética e aproximou seus hábitos. Google, Facebook e Twitter são as palavras mágicas que pautam o dia a dia de nossos jovens, que se intercomunicam de formas impensáveis para minha geração.
Poderíamos continuar a enumeração e a mostrar avanços materiais. No entanto, a simples leitura dos jornais nos fala de outra realidade na dimensão da vida humana que, em seu conjunto, chamamos, antropologicamente falando, de mundo cultural.
Ali nos deparamos com corporações sindicais que dominam o ensino e os serviços de saúde, impondo grosseiramente um domínio burocrático baseado nos vícios do clientelismo e da mediocridade. As avaliações internacionais sobre o nível de formação de nossos jovens e adolescentes põem a nu uma lamentável realidade: toda a América Latina está abaixo do mais atrasado país europeu, mas enquanto alguns avançam - como Chile e Brasil - outros retrocedemos, como Argentina e Uruguai.
Em nosso caso, os adolescentes são formados segundo uma visão parcial e mentirosa de nossa história, que deriva dessa mesma concepção da vida social. Esse viés de mediocridade, de igualar por baixo, se instalou no Estado por governos que enterraram seus tabus ideológicos (não pagar a dívida externa, romper com o FMI, morte ao capitalismo...), mas que seguem observando o mundo com suas velhas lentes escuras.
Por isso continuam defendendo o fracasso cubano ou acreditando haver algo de sério no venezuelano "socialismo do século XXI". Para tanto, copiaram um modelo populista de seguridade social que, em vez de tentar superar a pobreza, a congela para sempre: em vez de ajudar os adolescentes atrasados nos estudos, premiam-nos com um passe social; aos mais pobres oferecem dinheiro, e não educação, alimentação e moradia, que modo que eles e seus filhos não assumem o trabalho como um valor e continuarão tão pobres como antes, mas agora, além disso, dependentes da dádiva oficial.
Temos falado desses temas e alguns se surpreendem com o enfoque sobre a necessidade de falar corretamente. Certamente, sabe-se que a língua é um modo de pensar, mas além disso, socialmente, um vital instrumento de ascensão.
Ninguém pode subir na escala social usando um pobre idioma vulgar, inábil para fazer uma apresentação de temas econômicos, científicos, históricos ou de qualquer complexidade do conhecimento. Que o idioma incorpore expressões populares é algo aceito por todas as academias modernas, mas, quando a linguagem vulgar substitui a culta, condenamos à pobreza endêmica os que não sabem se expressar como requer qualquer atividade importante.
Nossa democracia se construiu desde a escola pública vareliana, que introduziu o grande instrumento da igualdade de oportunidades. Hoje, desgraçadamente, o nível de educação passou a ser o maior fator de discriminação. Não vamos superá-lo com "passes sociais" ou permissivismos de qualquer tipo. Nossa grande classe média, forjada com filhos de imigrantes em sua maioria semianalfabetos, encontrou no castelhano a escada para subir.
Hoje, desgraçadamente, é o contrário. Se não o entendermos, as conquistas materiais que temos alcançado se tornarão ilusórias. Ou só se sustentarão sobre uma grande desigualdade entre uma classe alta preparada e uma baixa, impedida de ascender. É tão duro e real como isto.
E, se não o entendermos, estaremos perdendo uma batalha cultural que, na democracia, é a mãe de todas as batalhas.
JULIO MARÍA SANGUINETTI é jornalista, historiador, advogado e foi presidente do Uruguai de 1985 a 1990 e de 1995 a 2000. © El País (Uruguai)/GDA.

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