11 de agosto de 2011

Lei Seca : visão de uma testemunha ocular de seu nascimento


BLOG DO PEDRO ABRAMOVAY

Em 09/08/2011 

A coluna de Gilberto Dimenstein na Folha no último dia 7 de agosto começa com:
“Impossível não ficar perplexo com o vídeo de um discurso de formatura que está circulando nas redes sociais.
Na cerimônia de formatura da faculdade de administração da ESPM no ano passado, o orador falou sobre um colega de turma que morreu porque, na volta de uma festa, perdeu o controle do automóvel. A partir do episódio, ele construiu imagens sobre os mistérios da vida e a importância da cautela e da responsabilidade. Finalizou o vídeo associando-o a suas carreiras e ao que teriam de enfrentar para dirigir uma empresa.
O orador era Vitor Gurman, morto há duas semanas, na Vila Madalena, por um automóvel que tinha 26 multas, dez das quais por excesso de velocidade. Ele voltava a pé para casa justamente porque não tinha ido de carro a uma festa, prevendo que iria beber.”
Esse caso me deixou particularmente tocado. Claro que o fato de Vitor ser amigo do meu irmão mais novo e ter morrido no bairo em que eu cresci e no qual meu pai ainda mora torna o caso mais próximo.
Mas há outro ponto : meu envolvimento direto com o tema da lei seca.
Achei que, até para homenagear o Vitor (que mostrou no seu discurso  sua sensibilidade para o tema), valeria fazer um post contando o meu ponto de vista sobre a história da lei seca.
Eu trabalhava como secretário de assuntos legislativos do ministério da jutiça (é a secretaria responsável pela elaboração normativa relativa a esse ministério) quando o ministro Tarso Genro chamou sua equipe e disse que achava importante o ministério se preocupar com o aumento das mortes no trânsito. Pediu que a Polícia Rodoviária preparasse um plano operacional e pediu para que eu elaborasse uma proposta de reforma normativa.
Apesar de ser secretário de assuntos legislativos, nunca fui adepto da tese de que a realidade se muda apenas com reformas legislativas, mas como era a missão do ministro fui estudar o assunto para ver o que era possível fazer.
Após ler bastante e conversar com especialistas me reuni com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e perguntei o que eles achavam que eram as principais causas de acidentes. Confirmando o que especialistas vinham dizendo há algum tempo eles apontaram o álcool como um dos principais responsáveis.
Imediatamente perguntei: “mas eu nunca fui fiscalizado, nunca vi uma fiscalização no Brasil. Por que vocês não fiscalizam”. Responderam prontamente: “A legislação, atualmente impede que a pessoa produza provas contra si mesma, portanto não adianta nada fiscalizar porque todo mundo se recusa a fazer o teste do bafômetro e fica por isso mesmo. Por causa disso ´nós paramos de fiscalizar.”
De fato, lembro que nós fizemos um levantamento e havia 2 bafômetros em funcionamento nas mãos das polícias do Brasil naquele momento. Nem se comprava mais bafômetro.
Ou seja, a lei (ou a interpretação dela) impedia a fiscalização por bafômetro. Isso por si só já era um choque. Sobretudo pensando que o bafômetro é largamente usado – de forma obrigatória- em vários países que também respeitam o princípio de que não se pode produzir prova contra si mesmo.
Reunido com a minha equipe, começamos a pensar. Alguém pode se negar a entregar a carteira de motorista para o guarda porque ela está vencida, argumentando que não quer produzir prova contra si mesmo? Não. E por quê? Porque no caso da carteira é apenas uma falta adminsitrativa, no caso da embriaguez ao volante isso é um crime.
O direito de não se produzir prova contra si mesmo é uma construção interpretativa a partir do inciso LXIII do artigo 5º da Constituição que diz “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (…). Portanto trata-se de um direito de quem corre o risco de ser preso, de quem está sendo acusado de um crime.
Assim, em se tratando de uma infração administrativa a regra não vale. E o poder de polícia pode obrigar a pessoa a apresentar determinadas provas.
Bom, uma solução para o caso seria descriminalizar a embriaguez ao volante. Se isso fosse feito, ou seja, o resultado de dirigir ao volante fosse apenas uma multa, aí o policial poderia obrigar a pessoa a fazer o teste. Mas essa proposta certamente não teria grande apoio entre os parlamentares ou entre a população em geral.
Mas a partir deste conceito começamos a pensar: ” e se se estabelecesse uma multa para a pessoa que não fizer o teste do bafômetro?” Não se está obrigando a pessoa a fazer algo que produza prova contra ela no processo penal, mas fica possível estabelecer uma multa alta – e a perda do direito de dirigir por um ano-  para quem se recusar a fazer o teste. 
Com a aprovação deste dispositivo voltaria  a fazer sentido a fiscalização pela polícia.
Apresentamos esta proposta. Submetemos a ideia a uma consulta públca e o texto foi aproveitado pelo Congresso Nacional quando se discutia uma MEdida Provisória sobre a venda de bebidas nas estradas. O texto passou por pequenas modificações mas a ideia central foi mantida, sobretudo graças a decisiva atuação dos deputados Beto Albuqueque e Hugo Leal e, finalmente, o texto foi sancionado pelo Presidente Lula.  
A partir da aprovação da lei as polícias tinham um instrumento para voltar a fiscalizar. O Ministério da Justiça comprou milhares de bafômetros e os entregou para polícias de todo o Brasil. A partir deste momento a fiscalização deu salto em todo país e os índices de mortalidade no trânsito diminuíram ou pararam de subir na proporção em que vinham subindo.
É claro que a lei só funcionará se houver fiscalização, mas essa fiscalização não era possível antes da lei.  Há estados que têm fiscalizado bem e tem colhidos os frutos disso. Há estados no qual a fiscalização é precária.
O mais importante é perceber que este não é um tema menor para a sociedade. Mortes como a do Vitor ocorrem cotidianamente. A lei deu condições para se começar um processo de mudança, mas a mudança não termina na lei.
Por isso é tão triste ver personalidades frequentemente pegas em fiscalizações. Elas,em geral, optam por não fazer o teste. Não serão punidas pelo direito penal. Mas devem ser politicamente responsabilizadas - politicamente - por não contribuírem para a mudança de cultura tão fundamental para salvar vidas.

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