23 de fevereiro de 2012

Brasil acanhado frente à Rio+20 Por José Eli da Veiga



Muito se contradisse o negociador-chefe do Brasil para a Rio+20, embaixador
André Corrêa do Lago, ao responder às excelentes perguntas da repórter especial
do Valor Daniela Chiaretti (16/2, p. A13). Ele ressaltou que há 20 anos ninguém
podia imaginar que a Convenção do Clima se tornaria a principal negociação
econômica no mundo. Mesmo assim, rechaçou a hipótese de que a cúpula de junho
tenha ênfase ambiental. Pior: serviu-se da conhecida parábola dos "três pilares"
contra o terceiro princípio da Declaração do Rio: o de equidade entre necessidades
desenvolvimentistas e ambientais.
Se ele mesmo diz que um tema eminentemente ambiental, como é a questão
climática, acabou por gerar a principal negociação econômica do mundo, não
deveria ao menos enxergar vasos comunicantes entre supostos "três pilares"?
Quando John Elkington lançou essa metáfora para sensibilizar executivos de
multinacionais, ele se referia a lucro, gente e planeta, termos que em sua língua
começam pela letra "p": "profit", "people" e "planet" (ver resenha do clássico de
Elkington no Valor de 27/09/2011, p. D10). Não tinha como imaginar que, quinze
anos depois, seu insight seria usado para se vender a ladainha de que as sociedades
se apoiariam em três pilares distanciados e paralelos.
País deveria defender igualdade na cúpula voltada a "repensar o
desenvolvimento" do mundo
Muito antes da emergência do ideal da sustentabilidade, já se mostrava impossível
separar o econômico do social e vice-versa. Além disso, quando se evoca o processo
de desenvolvimento, não é possível ignorar a importância crucial de ao menos três
outras esferas: política, cultural e psicológica. Boa pedagogia faz com que sejam
evitadas em treinamentos empresariais, já que seu objeto não é o conjunto da
sociedade. E se o truque for rebater tal crítica com a chicana de que todas as outras
esferas seriam partes da dimensão social, então fica muito mais grave o problema
da conexão que a economia mantém com a biosfera (ambiente), ambas reagindo a
uma incomensurável imensidão que seria o "social". Enfim, por ser todo o alicerce
do desenvolvimento humano, o ambiente não pode ser retoricamente rebaixado a
mero fator de um trinômio.
Mesmo supondo-se que as dimensões do desenvolvimento sustentável pudessem
ser reduzidas aos três pilares dos negócios, eles não seriam assimiláveis a pilotis de
um prédio. Nesse reducionismo, a metáfora precisaria realçar o caráter poroso das
intersecções. Afinal, os supostos "pilares" da sociedade são atravessados por fluxos
que permanentemente se misturam. Uma osmose que torna a integração dos
vetores de desenvolvimento o nó górdio do processo.Ora, é exatamente essa integração que deveria demover o Brasil de assumir na
preparação da Rio+20 o positivismo dos "três pilares". Essencialmente porque é o
combate às desigualdades - tanto entre as nações (eufemisticamente chamadas de
"assimetrias"), quanto nacionais (principalmente, mas não apenas de renda) - que
dá a liga do desenvolvimento sustentável, seja quantos forem seus imaginários
"pilares". Como as mais cruciais desigualdades são reproduzidas antes de tudo por
razões ideológicas, o Brasil não deveria enfiar essa viola no saco.
Mas há outra revelação igualmente chocante na entrevista de nosso "sherpa":
explícita afinidade com comportamento dos EUA, em contraposição ao da Europa,
alvo de sistemática e repetida desqualificação.
Não é razoável que, quatro meses antes da abertura de tão relevante conferência, o
governo anfitrião se mostre alinhado a algum dos polos, por mais direito que tenha
em discordar de outros. Ainda mais deplorável, neste caso, é se aceitar que o tema
da "governança internacional do desenvolvimento sustentável" se restrinja ao
conflito norte-transatlântico sobre a eventual criação de mais uma agência
especializada da ONU (a 16a!) e de uma reforma de seu Conselho Econômico Social
(Ecosoc).
Falando sério: poderá haver governança do desenvolvimento sustentável se ela não
for assumida pelo G-20 (que inclui o Fundo Monetário Internacional e o Banco
Mundial)? Sem isso, será que ela poderia chegar à OMC e a poderosas instâncias do
sistema das Nações Unidas que não respondem ao Ecosoc? Ou será que o
desenvolvimento sustentável seria capaz de adquirir governança global sem
engajamento da Corte Internacional de Justiça e, sobretudo, dos órgãos
subsidiários do Conselho de Segurança?
Com certeza no final de junho sairá do Rio algum tipo de "upgrade" da
sustentabilidade na hierarquia da ONU. Mas isso será, na melhor das hipóteses, um
modestíssimo avanço na direção de sua efetiva governança global. Em tais
circunstâncias, seria bem melhor se o Brasil aproveitasse a incomparável
oportunidade histórica de ser o anfitrião de uma cúpula voltada a "repensar o
desenvolvimento do mundo" (sic), para reerguer a bandeira branca da igualdade,
em vez de se deixar levar a reboque em disputas sobre Ecosoc e programa
ambiental (Pnuma). Mais: se mantivesse a altivez de não aderir ao polo que mais
tem resistido à bandeira da sustentabilidade, nem rejeitar justamente o polo que
mais se mostra disposto a levá-la a sério.
José Eli da Veiga é professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações
Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). Escreve
mensalmente às terças e excepcionalmente nesta quinta.
www.zeeli.pro.br

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