"Aqui nós mediamos o caos", diz diretora da pior escola.
O diagnóstico é recorrente entre especialistas e profissionais da área. Responsável pelo fraco desempenho do Rio Grande do Sul na apuração do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2011, o ensino público gaúcho, em especial a rede estadual, padece sob o peso de anos de baixos investimentos, infraestrutura precária, professores mal preparados, mal pagos e submetidos a um clima de intenso estresse. Em alguns casos, como nas escolas municipais de Porto Alegre, os salários são maiores e os recursos aplicados até superam o mínimo constitucional de 25% das receitas, mas aí as condições socioeconômicas dos alunos também ajudam a puxar as notas para baixo.
Juntos ou separados, esses fatores contribuíram para que o Rio Grande do Sul perdesse posições nos três níveis de avaliação do Ideb em 2011 na comparação com 2009. Considerando as redes públicas e a privada, o Estado até aumentou de 4,9 para 5,1 a nota média dos alunos dos anos iniciais do ensino fundamental e atingiu a meta estabelecida. Mesmo assim, caiu do sétimo para o oitavo lugar no ranking nacional, atrás de Minas Gerais, Santa Catarina, Distrito Federal, Paraná, São Paulo, Goiás e Espírito Santo. Essa piora ocorreu mesmo com o aumento, de 2001 a 2011, no valor médio aplicado por aluno, que passou de R$ 1,6 mil para R$ 4,7 mil por ano, segundo a Secretaria da Educação do Estado.
Nos anos finais do ensino fundamental os gaúchos mantiveram a nota média de 4,1 de 2009, mas ficaram abaixo da meta de 4,3 e caíram da sétima para a 12ª colocação no ranking. No ensino médio o desempenho foi ainda pior: a nota caiu de 3,9 para 3,7, abaixo da meta de 4,0, e derrubou o Estado da terceira para a oitava posição.
Já nas escolas estaduais, o melhor desempenho no último Ideb foi registrado nas séries iniciais, que atingiram a nota de 5,1, superior à meta de 4,7 para o ano e aos 4,8 obtidos em 2009. Nas séries finais, as escolas públicas gaúchas mantiveram os 3,8 de 2009, mas ficaram abaixo do objetivo de 4,0, enquanto no ensino médio o desempenho caiu de 3,6 para 3,4 entre o penúltimo e o último Ideb, abaixo da meta de 3,7 para 2011.
"Há um descaso de décadas com o ensino no Estado", diz o professor e pesquisador em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Becker. Ele se refere à rede estadual, marcada por permanentes embates salariais e políticos entre os governos e o Sindicato dos Professores Estaduais (Cpers). "É um cenário desolador", diz ele, listando carências como escolas precárias, bibliotecas "às moscas" e falta de professores e de funcionários.
Os problemas, diz Becker, prosseguem no campo pedagógico, pois boa parte dos educadores ainda trabalha focada em aulas expositivas, que são "improdutivas" para o desenvolvimento das estruturas de pensamento principalmente dos alunos mais jovens.
Para o professor, um salto de qualidade na educação pública estadual depende, entre outras coisas, de investimentos maciços em infraestrutura escolar, da criação de laboratórios e espaços para experimentação, do desenvolvimento de projetos de pesquisa interdisciplinares, da remuneração digna e da qualificação dos profissionais. Mas ele entende que esse é um processo de longo prazo.
A visão de que apenas no médio e longo prazo será possível melhorar as notas gaúchas coincide com a do secretário de Educação do Estado, José Clóvis Azevedo. "Não sei se vamos melhorar no próximo Ideb", afirma. Ele se diz "otimista" com os esforços do atual governo para colocar a educação em uma "nova realidade", mas reconhece que os resultados podem levar até uma década para aparecer.
O plano do governo inclui ampliação dos investimentos, reestruturações curriculares, capacitação dos professores para uma pedagogia menos "conservadora" em parceria com universidades locais e recuperação gradativa dos salários. Segundo Azevedo, o desafio educacional é maior para o Estado porque o ensino público recebe "massas" de estudantes que não têm condições de ir para escolas privadas, inclusive em regiões marcadas pela violência, pelo tráfico de drogas, pela vulnerabilidade social e desestruturação familiar.
A rede estadual gaúcha tem 1,12 milhão de alunos distribuídos em quase 2,6 mil escolas, mas o contingente vem caindo entre 30 mil e 50 mil por ano (em 2001 eram 1,43 milhão) devido à redução da população infantil e jovem, diz AZevedo. "Recebemos uma rede sucateada, com quase 2 mil processos de reforma [à espera de autorização]", relata. Agora o governo pretende reformar metade das escolas até 2014, incluindo a construção ou melhorias de áreas como refeitórios, espaços para lazer e esportes, bibliotecas e laboratórios.
O secretário pretende ainda completar, até 2014, a reestruturação curricular do ensino médio. A mudança começou no ano passado pelas turmas de primeira série e prevê uma metodologia de ensino por área de conhecimento, sem eliminação de disciplinas. Segundo Azevedo, o processo agrega quatro horas semanais ao currículo, que são ocupadas por seminários interdisciplinares voltados à elaboração de projetos de pesquisa e ao desenvolvimento de vocações profissionais. Em 2011 também foi adotado o sistema de progressão continuada para os três primeiros anos do ensino fundamental.
De acordo com o secretário, o governo gaúcho aplicou R$ 5,3 bilhões na manutenção e desenvolvimento da educação em 2011, o equivalente a 28,3% da receita líquida de impostos e transferências do Estado. O índice superou os 25% exigidos pela Constituição federal, mas ficou abaixo dos 35% estabelecidos pela regra estadual. Além disso, seis a sete pontos percentuais do total foram consumidos com aposentadorias e pensões.
Para este ano, a previsão de gastos chega a R$ 6 bilhões, ou 30% da receita. O patamar de 35% só deve ser alcançado em 2014, quando o governo promete pagar o piso nacional do magistério (hoje de R$ 1.451 para 40 horas semanais). Os salários, diz Azevedo, estão sendo corrigidos gradativamente.
O Rio Grande do Sul tem 76,2 mil professores estaduais ativos (90% deles com curso superior) e um contingente semelhante de inativos, e o salário é hoje o principal ponto de atrito entre governo e Cpers. O sindicato lembra que o piso nacional foi proposto pelo próprio governador Tarso Genro (PT) quando ministro da Educação, em 2008, e exige o pagamento do valor integral ainda em 2012.
"A categoria elegeu o Tarso [Genro], criou expectativas, mas percebeu que cometeu um equívoco", critica a presidente do Cpers, Rejane de Oliveira. "Mas hoje não há mais ilusão e vamos depositar nossas expectativas na mobilização". Segundo ela, é "impossível" falar em qualidade de ensino quando um professor ganha um básico de R$ 448 por 20 horas semanais (ou R$ 896 por 40 horas), como no Rio Grande do Sul.
Mas as criticas não param por aí, nem se limitam à atual administração. "Entra governo, sai governo, e eles tratam de derrotar a categoria, porque o conflito se transformou no elemento de debate nesta relação", afirma Rejane. Para ela, porém, a estratégia de "desmoralizar" os professores é um "tiro no pé", pois quem tem de prestar contas à sociedade pelo baixo desempenho das escolas estaduais no Ideb é o próprio governo.
A presidente do Cpers também critica as escolas "sucateadas", reclama da falta de materiais pedagógicos, livros e computadores e afirma que o Estado não oferece formação continuada para todos os servidores. Além disto, critica o elevado número (21,2 mil, ou quase 28% do quadro, conforme a Secretaria da Educação) de professores estaduais não concursados, mas contratados numa relação de trabalho "precária". Em 2002 o total de professores atingia 92,9 mil, sendo apenas 9,8 mil (10,6%) com contratos temporários, renovados periodicamente. Agora, segundo Azevedo, 5,5 mil aprovados em concurso realizado neste ano serão chamados a partir deste mês.
Na rede municipal de ensino de Porto Alegre, o piso salarial dos quase 4,2 mil profissionais é de R$ 2.187 por 40 horas semanais, mas mesmo assim as escolas municipais não apresentaram um grande desempenho no Ideb. Nas séries iniciais do ensino fundamental, a nota ficou em 4,4, igual à de 2009, mas abaixo da meta de 4,5 e da média de 5,1 obtida pelas escolas estaduais no mesmo nível.
Nas séries finais, as escolas da Prefeitura de Porto Alegre repetiram os 3,6 de 2009 e também ficaram abaixo da meta de 3,7 e do resultado obtido pela rede estadual, que atingiu os 3,8. "Ficamos aquém do que esperávamos", admite a secretária municipal da Educação, Cleci Jurach. De acordo com ela, o desempenho pode ser atribuído em parte ao modelo pedagógico por ciclos adotado na rede municipal, no qual os alunos passam por avaliações a cada três anos sem reprovação.
Com isso, explica a secretária, a rede não tinha o hábito de fazer provas semelhantes ao Ideb, mas o sistema começou a ser implantado em 2011 e agora os alunos estão em fase de adaptação. "Queremos ver se eles estão progredindo e dominam os conteúdos mínimos", afirma Cleci. Outro fator que afeta o desempenho, segundo ela, é que as escolas municipais normalmente estão nas periferias, onde predomina uma população carente e em situação de risco social. A prefeitura tem 94 escolas de ensino fundamental, com 43 mil alunos, e duas de ensino médio.
A pior escola - Encravada no meio de um bairro pobre na zona leste de Porto Alegre, marcado pela violência e pelo tráfico de drogas, a escola Antão de Faria teve o pior desempenho da rede estadual na cidade nas séries finais do ensino fundamental no último Ideb. A nota caiu para 1,9, ante 3,3 em 2009 e bem abaixo da meta de 3,5 para 2011. Uma visita ao colégio, que já foi conhecido pelo apelido de "Carandiru" (presídio paulista desativado em 2002), revela que a avaliação do Ministério da Educação (MEC) está longe de expressar a extensão do drama vivido por professores e alunos da instituição.
"Aqui nós mediamos o caos", resume a diretora Faúsa Nedel, no cargo desde o início de 2010. Uma amostra dos problemas aparece logo na chegada. Um portão de ferro externo dá acesso a um corredor entre dois alambrados de vários metros de altura que segue até a porta principal da escola, protegida por grades e um vigia. Do lado de dentro, os pátios das séries iniciais e das turmas mais velhas são separados por um muro, mas nenhum deles tem equipamentos de esporte e lazer. Apenas mato e pedras no chão, usadas com frequência em brigas entre os alunos.
No fim de 2010 a escola até passou por uma pequena reforma, com pintura de paredes e troca de pisos. Mas como muitas obras públicas em fim de governo, o trabalho parou pelo caminho. O batente da porta do refeitório, por exemplo, segue carcomido por cupins, enquanto o auditório renovado não tem uma cadeira sequer e não pode ser usado. Assim como a biblioteca, que fechou em 2004 e também foi reformada, mas não funciona por falta de bibliotecária. Por enquanto uma das merendeiras organiza os livros, mas não há data prevista para a reabertura.
Segundo Faúsa, além das carências de infraestrutura e da escassa verba de R$ 3,5 mil mensais para custeio, a escola lida com um público em risco social e com dificuldades de aprendizagem. Cerca de 20% dos alunos têm o pai, a mãe ou ambos presos e são criados por parentes. Para muitos, a expectativa máxima é pela alfabetização e a evasão e a repetência são gigantescas. Das 21 turmas das séries iniciais, apenas uma conclui o ensino fundamental ao fim de cada ano. E dos 1,2 mil estudantes matriculados no início do ano passado, 1 mil mantêm o vinculo atualmente, mas em média 350 a 400 deles deixam de ir às aulas diariamente.
"Quando os alunos faltam, tentamos contato por telefone, mas não há participação da família porque a escola não é prioridade para muitas delas", afirma a diretora. Segundo ela, "a rua é mais interessante" para muitos alunos e o cotidiano de violência e abandono acaba se reproduzindo dentro da escola. O recreio já teve que ser suspenso várias vezes para evitar brigas e há alguns dias uma aluna, filha de um traficante de drogas, disse que mandaria alguém "cortar as pernas" do colega com o qual discutiu. Depois de muita conversa os ânimos foram contidos.
O clima tenso repercute nos professores. No ano passado quatro deixaram a escola, intimidados por ameaças dos alunos. Outros quatro ou cinco faltam diariamente por estresse ou doença. "A situação é insalubre", diz Faúsa. No total a escola tem 44 docentes, além de 16 funcionários, e há um mês aguarda pela substituição de uma professora que se aposentou.
Mas para não dizer que só existem problemas, Faúsa explica que a escola foi enquadrada em 2011 no programa Mais Educação, do MEC, o que permitiu a abertura de oficinas nos turnos inversos das aulas em áreas como informática, matemática, teatro e dança. A dificuldade, porém, é novamente atrair o interesse dos estudantes. No primeiro ano, apenas cem das 250 vagas oferecidas foram preenchidas. Em 2012, o número de alunos participantes do projeto caiu ainda mais, para apenas 50.
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