9 de novembro de 2013

Revista Status, 8/11/2013
AXË SANGRENTO

Em nenhuma outra capital do País se mata tanto quanto em Salvador. Policiais, traficantes e mães que perderam seus filhos contam como é sobreviver no meio de tanta violência.





Sobreposta ao fundo azul, uma pomba branca orna a bandeira oficial do município de Salvador. A ave, símbolo da paz no mundo todo, não poderia estar em maior dissintonia com a realidade da capital baiana. Terceira maior metrópole do Brasil, a cidade registrou, entre os anos de 2001 e 2011, o segundo maior aumento no número de homicídios entre todas as capitais do País.
De acordo com dados do relatório Mapa da violência 2013 – homicídio e juventude no Brasil, publicado pelo Centro de Estudos Latino-Americanos, Salvador foi palco de 530 assassinatos em 2001 e de 1.671 em 2011, um aumento de 215,3%. Apenas Natal sofreu aumento maior: 251,3% (de 113 em 2001 para 397 em 2011). Em números absolutos, porém, Salvador supera por muito a capital potiguar: apenas em 2010 e 2011, a capital baiana foi palco de 3.518 assassinatos, enquanto Natal teve 723. Para efeito de comparação, Rio de Janeiro e São Paulo, as duas capitais mais populosas do Brasil, somaram naqueles dois anos 3.231 e 2.882 homicídios, respectivamente. Destacando apenas 2010 e 2011, os anos mais recentes com dados disponíveis, em nenhuma outra capital brasileira se matou tanto quanto em Salvador.
O fotógrafo Lunaé Parracho, da agência de notícias Reuters, aventurou-se por algumas das áreas mais violentas da cidade para conhecer de perto os personagens dessa tragédia. Mães que perderam os filhos, policiais militares, traficantes, moradores que vivem em permanente estado de terror. Suas fotos, publicadas nestas e nas páginas a seguir, ilustram com perfeição seu relato pungente da banalização da morte na cidade conhecida mundialmente por sua história, cultura e beleza. Ao longo do texto de Parracho, incluímos a análise de especialistas ouvidos por Status para ajudar a entender o que está por trás dessa onda de violência.
A cidade de Salvador é um importante destino turístico graças às suas belas praias e festas populares. Seu carnaval é considerado a maior festa de rua do mundo. Apesar de ser idílica em muitas maneiras, a cidade vem sofrendo uma explosão de violência sem precedentes nos últimos anos, parte de um fenômeno nacional com a migração da violência rumo ao Norte. Enquanto a taxa de homicídios caiu mais de 63% no Sudeste nos últimos dez anos, houve um aumento de 86% no Nordeste.”
Menino simula armas com as mãos enquanto a polícia patrulha as ruas do nordeste de amaralina, um dos bairros mais violentos da cidade.
Moradores observam corpo sendo retirado na favela alto do cabrito.
O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor do relatório Mapa da violência 2013, explica que na última década os homicídios se espalharam das capitais do Sudeste para capitais de outras regiões, principalmente do Nordeste, em um processo relacionado a uma mudança no modelo de desenvolvimento nacional a partir de investimentos em grandes obras e aumento da urbanização de outras capitais que não as metrópoles do Sul e Sudeste. “Esses investimentos geraram fluxos populacionais e o Estado não conseguiu garantir serviços básicos para essas pessoas, preservando ou mesmo aumentando a desigualdade social. Salvador pode ser considerada um símbolo dessa desigualdade”, diz Waiselfisz. “Nesta última década, a criminalidade também muda: o crime organizado ganha força nacional e internacionalmente. Novamente por despreparo do Estado, há uma expansão das organizações criminosas, principalmente de tráfico de drogas.”
Um dos policiais com quem converso resumiu a situação de Salvador com sua própria tragédia pessoal. “Estamos vivendo em meio a uma guerra. Tento não sair de casa e, quando o faço, saio armado”, explica, pedindo para manter-se anônimo. Ele sabe o que está falando – seu filho foi morto recentemente por um ladrão para roubar seu iPad. Ele era apenas um adolescente e morreu quando retornava da escola, na rua perto de sua casa, num bairro de classe alta.
Do outro lado da cidade, na favela Fazenda Coutos, Lúcia Menezes, 53 anos, também evita sair. “Só saio de casa para ir à igreja.” Lúcia também perdeu seu filho Ebert, 24 anos, baleado pela polícia em seu bairro, na periferia da cidade. A polícia alega que cinco homens atiraram contra a patrulha, e que Ebert foi atingido durante a troca de tiros. Vizinhos e familiares dizem que Ebert não era criminoso e estava desarmado, e que levou um tiro na nuca. Desolada, Lúcia diz temer a polícia e, portanto, não buscará punição para os assassinos do seu filho. “Será Deus que julgará isso, pois Jesus tem olhos de fogo.” Ela ainda gostaria de ver os resultados de uma investigação real só para limpar o nome do seu filho. “Ele não era bandido”, garante. A irmã de Ebert, Cíntia, 30 anos, observa a pichação no muro em memória de seu irmão, chamado de Kiko pelos amigos. “Eles não têm esse direito”, suspira. “Tenho mais medo da polícia aqui em Fazenda Coutos do que dos bandidos. Pelo menos os bandidos daqui nos respeitam.” Nas favelas de Salvador, são constantes as queixas contra a polícia. As pessoas que vivem em áreas controladas por gangues de traficantes têm muito medo de se identificar e sofrem intimidação pela polícia, que usa força excessiva.
Ana Claudia, 39 anos, é outra mãe que perdeu o filho, Reinaldo, na Fazenda Coutos, nas piores circunstâncias. Em dezembro, ela viu Reinaldo, de apenas 14 anos, sendo espancado e morto a tiros por traficantes de uma favela rival. “Vivemos uma guerra aqui. O massacre do meu filho durou mais de 30 minutos. Os vizinhos me disseram que chamaram a polícia, mas ninguém apareceu.” O pai de Reinaldo carregou seu filho em seus braços para o hospital, mas ele morreu antes de dar entrada.”

Espiral de Violência
Policial patrulha favela no nordeste de amaralina, com muro cravado de balas por conta de tiroteios frequentes.
Para o professor de sociologia Luiz Lourenço, do laboratório Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a violência em Salvador passa pela disputa por território entre as gangues prisionais que atuam no tráfico de drogas. “Diferentemente de São Paulo, onde há a hegemonia do PCC – e é um fato que o PCC também atua em Salvador –, aqui há uma fragmentação do poder e mesmo os dois maiores bandos, o Comando da Paz e o Grupo de Perna, sofreram pulverização com o combate policial”, compara Lourenço. “Nesse cenário, ao prender um traficante, a polícia abre espaço para novas disputas, em uma espiral alimentada também pelo aumento do preço da droga e pela cobiça pelo controle dos pontos de venda.”
Eduardo Machado, também especialista em segurança pública pela UFBA, afirma que o tráfico de drogas explica apenas em parte a explosão do número de mortes em Salvador. “A desigualdade social, o desemprego, a falta de escola, o transporte público, tudo isso tensiona as relações entre os moradores. Nosso padrão de desenvolvimento arrebenta com os laços de vizinhança, ao mesmo tempo que a juventude negra é extremamente discriminada, principalmente pela polícia”, afirma Machado.
Cenas de crimes violentos fazem parte da vida cotidiana aqui. Na noite da Sexta-Feira Santa, o corpo de uma mulher baleada no rosto foi abandonado em uma rua no bairro de Ondina, e um jovem de 16 anos foi morto com quatro tiros nas costas na favela Alto do Cabrito.
Na tentativa de conter a explosão de violência, o governo do Estado começou a instalar as chamadas Bases de Segurança Comunitária, semelhantes às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) das favelas do Rio de Janeiro. Um capitão de polícia me diz que as bases conseguiram reduzir drasticamente os crimes violentos, mas que os tiroteios entre traficantes e policiais ainda são comuns.
Traficantes posam com suas armas

Outro policial afirma que só aceita críticas de alguém que tenha de fato entrado na área conhecida como Nordeste de Amaralina. Esse bairro tem frequentes tiroteios e vários policiais foram baleados lá enquanto estavam em serviço. Ao contrário de outras áreas da cidade onde os traficantes evitam confronto direto com a polícia e focam nas disputas com gangues rivais, em Nordeste de Amaralina o alvo é a própria polícia.
Ao acompanhar a polícia a pé ou de carro, você pode sentir a tensão no ar e a iminência do pior. Eles não baixam suas armas nem por um instante. Numa patrulha, a tensão da polícia aumenta quando passamos pelo “beco dos atiradores” e “muro dos rifles”, dois lugares onde frequentes tiroteios deixaram suas marcas de diferentes calibres.
Policiais treinam para combater gangues de traficantes e corpo jaz em viela da cidade, uma cena comum para os moradores de Salvador.
Na favela do Areal, uma ameaça para a Base de Segurança Comunitária foi pintada em uma cruz com a palavra “UPPzinha”, numa clara referência às unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro, só que com desdém. Completando a pichação, havia o desenho de uma pistola, interpretado pela polícia como uma ameaça.
Uma senhora de idade, que preferiu permanecer anônima, diz que a presença da polícia aumentou muito, mas os traficantes continuam lá. “Eles estão apenas mais escondidos.” Ela me conta que, sempre que o namorado da filha quer visitá-las, a família tem que pedir permissão aos traficantes. O aparecimento de estranhos no bairro gera suspeitas.
Longe de ter uma explicação fácil, a violência em Salvador está associada a graves problemas sociais. Ana Claudia, a mãe que viu seu filho ser morto, diz: “Os jovens daqui não têm opções. Eles nascem e crescem no conflito. Nossa classe não é valorizada. Se você diz que mora na periferia, você é visto como traficante ou ladrão.”

Na Mira do Tráfico
O coordenador geral da ONG Centro de Educação e Cultura Popular de Salvador, Edmundo Kroger, trabalha com cerca de 200 jovens soteropolitanos. Ele afirma que são exatamente esses jovens as grandes vítimas da violência na cidade. “São eles, os adolescentes negros, os que pagam com a vida. Para eles, o dilema é muito claro: entrar ou não entrar para o exército do tráfico. Muitos nem sequer frequentam escola e são facilmente seduzidos pelo convite dos bandidos.”
Em outra favela na periferia, um grupo de traficantes aceita meu pedido para fotografá-los. Quando eu estava explicando o motivo da minha história, de repente me mandam atravessar para o outro lado da rua. Um olheiro que eu não havia notado avisou que a polícia estava se aproximando. Eram cinco jovens, encostados contra um muro no final da rua, armas em punho, em silêncio. Um se agacha, espia pela esquina o tempo todo, enquanto fala ao telefone.
Sento-me no meio-fio, de onde eu posso vê-los e de onde eles podem me ver. Acho melhor não fotografar esse momento, pois havíamos combinado que eles não seriam identificados nas fotos. Uma batida policial seria a pior coisa que poderia acontecer neste momento, penso, pois poderia parecer coincidência demais para eles. A tensão dura de 10 a 15 minutos, até que eles dizem “tudo certo”, e um deles faz um gesto para mim com o revólver na mão, para atravessar de volta. Pelo que pude concluir, era uma patrulha a pé da polícia e os traficantes tentam evitar confrontos. Seus maiores adversários são outros traficantes de favelas vizinhas, e a sensação de confrontos iminentes, com a expectativa da chegada da polícia ou de um ataque dos rivais, é parte de sua rotina diária.
Um deles, cujo apelido é Gigante, 17 anos, conta que se juntou aos traficantes para defender a sua comunidade de gangues de uma favela rival. “Eles oprimem a nossa comunidade e jamais gostei de opressores, então entrei para o movimento. Matei um com quatro tiros, e depois comecei a me sentir outra pessoa.” Gigante acrescenta: “Ou matamos ou morremos.”
Outro integrante da gangue, Veneno, 18 anos, estudava em uma escola num bairro controlado por traficantes rivais. Ele se juntou à gangue quando os outros o perseguiam a ponto de crivar de balas a loja de seu pai. Em momentos de alta tensão entre as gangues, mesmo os não integrantes sofrem represálias. “Protegemos a comunidade dos inimigos, e quando podemos ajudamos os necessitados, compramos gás de cozinha, comida”, ele me conta. “Tomei a decisão de viver do crime, mas vivemos com humildade e com respeito.”
Rojão, 22 anos, trabalhava num mercado quando tinha 14 anos e foi confundido com um ladrão pela polícia. “A polícia me levou para um lugar isolado e me bateu até sangrar”, lembra. “Fiquei revoltado e com muita raiva, e o diabo entrou em minha cabeça. Foi aí que me envolvi com o tráfico.” Sem saída, perseguidos pela polícia e atacados por gangues rivais, todos têm histórias e motivos diferentes. Entretanto, um comentário de outro integrante da quadrilha, Pilintra, faz com que todos concordem acenando com a cabeça. “O que sinto mais falta, todos os dias, são sorrisos.”
Em tempo: procurada por Status para falar sobre a violência em Salvador, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia preferiu não se pronunciar.

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