Revista Será, 16/4/2014
“Adorno escreveu em Minima Moralia que a modernidade tinha ficado fora de moda. Hoje estamos confrontados, ao que parece, com algo mais definitivo: não a obsolescência, mas a morte da modernidade”. Sergio Paulo Rouanet, em “As razões do iluminismo”, de 1984.
De acordo com sua etimologia, modernidade deriva de hodiernus: “o que é de hoje”. Um conceito de tempo. Na sociologia, passou a significar as diversas rupturas ocorridas na civilização a partir do final do século XIX e começo do XX. Não mais a simples evolução que ocorria desde o Renascimento, ruptura anterior em relação ao medievalismo.
Na economia, quase nenhuma mudança ocorrera desde então. Nenhum avanço técnico determinante que reorientasse o rumo do processo de produção. Nas artes, apesar de alguns Rembrandts, não houve ruptura profunda nos conceitos da estética plástica, assim como na literatura. O propósito continuava sendo aproximar a imagem do real. Na política, apesar do cataclismo da Revolução Francesa já no alvorecer da modernidade, mantiveram-se os mesmos princípios básicos do poder das nobrezas laicas e religiosas.
A partir do final do século XIX, tudo passa a ser reorientado. Surgem rupturas em todos os lados da vida social e econômica. O mundo novo que desponta é, pouco a pouco, chamado de modernidade.
Mesmo que na pintura e na escultura tenha havido um movimento para milhares de anos atrás, inspirado em obras primitivas, as artes plásticas foram “modernizadas”, com os impressionistas, cubistas, abstracionistas.
Até então, a ciência buscava entender a natureza. A partir do modernismo, passou também a transformá-la. O conhecimento passou a produzir instrumentos técnicos que dominavam e transformavam a realidade.
Ao longo de toda a história, o propósito da economia era garantir os meios de sustentação da vida, biológica e socialmente, por meio de um processo produtivo onde a produtividade evoluía lentamente e quase não surgiam novos produtos. Na modernidade, houve uma revolução no aumento da produtividade e ainda um passo adiante, criando novos produtos, não mais simplesmente mudando a maneira de fabricá-los, e criando a atual sociedade de consumo.
Na literatura – inicialmente a poesia – foram rompidos os conceitos estéticos anteriores, quando cada poeta apenas fazia novos poemas. Eles passaram a inventar uma nova poesia.
A arquitetura também mudou, passando de como harmonizar o homem com a natureza para construir seu habitat – característica de toda a evolução, desde as cabanas indígenas até as moradias do século XVIII, passando pelas grandes edificações greco-romanas – para como dominar a natureza construindo edificações, das quais os primeiros exemplos são os arranha-céus norte-americanos.
Esse tempo, dito modernidade, parece ter seus indicadores entrando em um processo de esgotamento no seu papel de atender a permanente ânsia humana por mais bem-estar e prazer.
No mundo da modernidade de hoje, a arte mostra seus impasses. A estética foi substituída pelo mercado, o valor-beleza pelo valor-monetário. Em vez de reserva de belezas para deslumbrar, reserva de valor monetário para enriquecer. E daquelas obras que resistam ao sentimento de beleza, talvez nenhuma dure por décadas, nenhuma por séculos, como resistiram as obras dos grandes mestres da modernidade – como Picasso, Matisse e um enorme número de artistas modernos. Qualquer que seja a teoria estética, a maior parte das exposições ditas vanguardistas de hoje expõe lixos com valor de mercado. Em alguns casos, lixo de fato, como produto artístico. Vargas Llosa cita uma exposição em um dos maiores museus do mundo onde uma das obras era um vaso com fezes.
A beleza da arquitetura moderna, caracterizada pela novidade do domínio da natureza – as grandes vigas de concreto, do tipo MASP ou obras de Niemeyer provocando a emoção da surpresa da vitória sobre a gravidade, como a beleza de um foguete ao subir, ou um avião voando – caiu no hábito e ao tornar rotineira essa vitória esgota seu poder de emocionar. As obras da arquitetura moderna, cuja beleza é baseada no inusitado da estrutura, produto da engenharia, perdem a capacidade de inspirar sentimento de beleza. Mais deslumbramento permanente haverá com o teto do Pantheón, onde o arquiteto dialogou com a gravidade e com cada pedra para fazer seu equilíbrio harmônico, do que com a cúpula do plenário do Senado em Brasília, dominando a gravidade com o simplismo do concreto. A beleza de linha reta está mais no poder da estrutura do que no desenho da forma.
O conceito da arquitetura moderna está ainda mais esgotado pelo ambiente fechado usando ar condicionado. A escassez ecológica passará a considerar moderno o que for capaz de garantir conforto usando menos energia. Como muitas obras do passado pré-modernista.
Dificilmente, no futuro, uma nova capital será construída seguindo o modelo de Brasília, tanto na arquitetura quanto no urbanismo. Lembro-me de uma viagem em helicóptero com o Saramago, sobre o Distrito Federal. Quando deixamos de sobrevoar as cidades satélites e entramos no chamado Plano Piloto, ele disse: “E pensar que no futuro isso aqui em baixo será considerado velho e o novo estará lá atrás, nas cidades que se renovarão em novo estilo”.
Diante da ecologia e até da geometria, a modernidade do transporte privado usado em Brasília e nos subúrbios norte-americanos também está se esgotando. Não será possível, no futuro, considerar moderno o transporte privado, com a esdrúxula lógica de filas engarrafadas de veículos pesando toneladas levando um único passageiro com poucos quilos.
Mais ainda do que as artes, a economia moderna se esgota. O modelo moderno da economia submetida à demanda voraz por novos bens, que considera que o bom é o novo – sem importar sua lógica, sua harmonia com a natureza, ou o bem-estar que gera –, está se esgotando. Maior símbolo da modernidade, o automóvel é um exemplo de esgotamento. Não há como continuar subordinando a economia à produção de automóveis. Há limites até geométricos nos estacionamentos das cidades. Os engarrafamentos e suas perdas de vida, seja por acidentes ou aprisionamento, o desperdício de combustível, a poluição emitida, estão esgotando o automóvel privado como indicador da modernidade desejada. Prova são os limites ao seu uso, por rodízio, por interdição de uso e até por limitação na fabricação, como recentemente na China.
Antes da modernidade, a economia servia para transformar pedras, plantas e animais nos homens e seus produtos, mas dentro dos limites tecnológicos e com o propósito de atender necessidades. O modernismo tem sido a ampliação esquizofrênica da transformação de pedras, plantas e animais em produtos do homem e em sua civilização moderna. A modernidade significou substituir necessidade por demanda, criada por manipulação mental, usando os instrumentos da publicidade. Da mesma maneira como até hoje o homem quer comer mais do que precisa, um resquício dos primórdios anteriores à agricultura, quando se comia mais para acumular energia para os períodos de escassez, hoje o consumismo se explicaria pela publicidade sintonizada com a biológica voracidade na ingestão de alimentos no passado pré-histórico, agora “comendo” os bens da indústria. É a modernidade industrial fazendo com a engorda do homem no modernismo o que a revolução da agricultura fez para o homem que deixava o primitivismo. No livro “A Desordem do Progresso”, de 1990, levantei a hipótese de que o consumismo poderia ser explicado pela ânsia de viver mais anos chupando o tempo de vida do produtor, sob a forma dos produtos que adquirimos. Seríamos vampiros de tempo.
Qualquer que seja a explicação para o absurdo lógico e ético do consumismo, o modelo moderno de economia para o consumo está se esgotando, em função dos limites das diversas formas de endividamento, tanto o financeiro quanto – mais ainda – o ecológico, nesta era Antropoceno.
Existencialmente, o consumismo se esgota como vetor de realização dos homens transformados em glutões saciados. O surgimento do moderno homem químico, dependente de drogas, é uma alternativa ao vazio existencial na modernidade, resultado do esgotamento da modernidade consumista para realizar cada indivíduo.
Também a ética moderna se esgota. A modernidade criou uma ética que não tolerou a escravidão mas aceitou a desigualdade, mesmo que crescente; que defendia a democracia, embora tenha convivido com os mais brutais regimes autoritários da história; que não apenas tolerava, mas via como símbolo de progresso a destruição da natureza. Esses princípios estão se esgotando.
A desigualdade, ao se aliar ao avanço técnico e à megaconcentração de renda do mundo atual, desigualou até a esperança de vida segundo a capacidade financeira da pessoa para comprar anos de vida, e já começa a criar a possibilidade de uma ruptura da própria semelhança biológica entre seres humanos. Uma nova ética deve surgir, que aceite a marcha rumo à dessemelhança da espécie ou recuse a apartação criada pela modernidade.
Os limites da natureza ao progresso esgotam a ética do antropocentrismo radical e arrogante, exigindo uma nova ética de responsabilidade ecológica e de respeito aos demais atores do mundo da vida.
Em um mundo global, a democracia nacional baseada na vontade de indivíduos formando maiorias esgotou-se. O regime político futuro vai exigir capacidade de combinar a vontade individual do eleitor com o longo prazo histórico, e os interesses nacionais com o interesse planetário.
O futuro da modernidade – no seu conceito etimológico, “o que é de hoje” e no sentido civilizacional, “o que é melhor para o bom funcionamento da sociedade dos homens com seus produtos, concretos e abstratos” – vai exigir uma orientação da modernidade-técnica, definida pela novidade técnica, para uma modernidade-ética, definida pela realização dos propósitos civilizatórios por um mundo melhor e mais belo, não mais um mundo apenas cheio de bens e serviços, característico da modernidade atual em ênfase histórica terminal.
A modernidade da epistemologia baseada no avanço do conhecimento por especialidades científicas isoladas, desde Humboldt, se esgota. O avanço esbarra hoje nas limitações de cada conhecimento isolado nos limites de sua disciplina. A biologia é incapaz de entender o cérebro, sem considerar as ciências da informática, da microeletrônica, da física nuclear e quântica. Na ponta do seu conhecimento, cada área exige a multidisciplinaridade de uma nova modernidade epistemológica.
A utopia modernista – do consumo para uma elite com liberdade para consumir ilimitadamente em uma sociedade dividida; ou do consumo igual para todos, sacrificando a liberdade, em sua vertente socialista – deixou de satisfazer aos anseios civilizatórios. A próxima utopia deve se preocupar menos com a economia e sua produção e mais com a estrutura social em sua relação com a natureza.
O século XX assistiu a um longo debate entre a primazia da igualdade sobre a liberdade, aceitando-se a desigualdade como fato inevitável. A utopia de um Novo Humanismo deve combinar esses dois propósitos ontológicos do ser humano, levando em conta o respeito ao equilíbrio ecológico: uma espécie de eco-liber-igualdade, com base nos seguintes princípios:
- Estabelecimento de um piso social abaixo do qual nenhuma pessoa ficaria excluída dos bens e serviços essenciais;
- Definição de um teto ecológico acima do qual não será permitido o consumo de produtos considerados depredadores;
- Garantia de educação de alta qualidade para toda pessoa, desde a primeira infância, assegurando-se plena igualdade de oportunidade a todos;
- Uso da educação como escada de ascensão social para cada indivíduo usar livremente seu potencial dentro do espaço da desigualdade tolerada.
O texto vigoroso e lúcido de Cristovão Buarque depõe a favor do bom senso e da lógica comunitária que se alberga nos substratos da modernidade. Esperamos que a Morte da modernidade seja o prenúncio da morte do humanismo que coloca o homem no centro de todas as coisas, e todas as coisas a seu serviço. Será que estamos chegando a uma nova era histórica? precisamos então de uma revolução neocopernica como defende Halévy!
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