RIO e BRASÍLIA — No último dia 20 de março, uma decisão do juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto, da 37ª Vara Criminal do Rio, rejeitou uma denúncia do Ministério Público Estadual pedindo a prisão de um homem detido com nove gramas de maconha e 18 gramas de cocaína. Em sua sentença, o magistrado usou uma série de referências jurídicas para afirmar que o uso de drogas jamais deve ser visto como crime, mas sim, na pior das hipóteses, como um problema de saúde. Mais recentemente, na última quinta-feira, outra determinação, desta vez da Justiça Federal de Brasília, obrigou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a liberar o uso de um medicamento à base de canabidiol (CBD), derivado da maconha, no tratamento de uma criança com epilepsia.
Os ventos de flexibilização da política em relação à Cannabis sativa, que sopram fortemente no Uruguai e em estados americanos como Colorado e Washington, chegaram ao país. Em outubro do ano passado, um juiz de Brasília já tinha absolvido um homem flagrado com 52 trouxinhas de maconha e acusado de tráfico, ao entender que a portaria do Ministério da Saúde que inclui a erva no rol de drogas proibidas é inconstitucional. E, no Congresso, dois projetos de lei dão nova força ao debate. Em fevereiro, o deputado federal Eurico Júnior (PV-RJ) propôs liberar a plantação de maconha em residências, além do cultivo para usos medicinal e recreativo. Mês passado, o também deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) foi mais longe, com um projeto que regulamenta produção e venda de maconha.
O termômetro no centro de poder nacional indica que este ano, com eleições executivas e legislativas à vista, nada disso será votado. Mas toda essa movimentação reflete intensas transformações em torno do assunto. Enquanto, no Colorado e em Washington, a comercialização da droga por particulares foi liberada e rende lucros e impostos, o governo uruguaio deve divulgar até a próxima quinta-feira a forma como as autoridades locais cultivarão e venderão, controladamente, a maconha.
— Não digo que devemos seguir o Uruguai, mas não podemos ficar do jeito que estamos. Perdemos a guerra contra as drogas. O jeito agora é descobrir como reverter a derrota — comenta o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que vai promover uma série de audiências públicas para, até o fim do ano, produzir um relatório sobre a maconha que será entregue à Comissão de Direitos Humanos do Senado. — Há várias questões a responder. A maconha leva às drogas pesadas? Até que ponto estamos sacrificando pessoas que precisam de medicamentos com base na planta?
Esse relatório foi motivado por uma petição on-line no site do Senado que reuniu 20 mil assinaturas. São pessoas que pedem mudanças na legislação. Hoje, vale no país o artigo 28 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Segundo o texto, porte de drogas para consumo pessoal não deve ser punido com prisão. Mas a lei também diz que, para diferenciar uso de tráfico, o juiz deve atentar à quantidade, ao local e às condições do flagrante, além das “circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Sem jamais especificar a partir de que quantidade de droga se configura o tráfico.
— Quando a polícia pega uma pessoa preta, pobre, diz “você não é usuário, é traficante”, e ela vai para a cadeia. Mas, se o usuário for de classe média, não vai — analisa o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, coordenador da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. — As drogas no Brasil são formalmente proibidas mas, na prática, não, o que é gravíssimo. É um faz de conta. Melhor é regulamentar e educar, e agora o Brasil está acordando. Vamos discutir, vamos quebrar o tabu, ver do que se trata.
FHC sabe que, em ano eleitoral, “se for discutir esse assunto vai virar ‘cara ou coroa’, e não é assunto partidário, é de saúde pública”. O tema divide opiniões no Parlamento, onde muitos se opõem a sequer debater uma mudança. O Poder Legislativo, contudo, não é o único caminho para a flexibilização, dizem especialistas. Está em trâmite no Supremo Tribunal Federal recurso extraordinário da Defensoria Pública de São Paulo contra a condenação do presidiário Francisco Benedito da Silva à prestação de serviços comunitários após ser flagrado com maconha numa cadeia em Diadema (SP).
No recurso, a defensoria questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343 com o argumento de que fere o direito à intimidade e à vida privada. Em dezembro de 2011, o STF reconheceu a chamada “repercussão geral” da questão, o que significa que casos semelhantes em todas as instâncias da Justiça deverão seguir a decisão da Corte. Se, no julgamento do recurso, o Supremo decretar a inconstitucionalidade do artigo que prevê punição a usuários, porte e consumo estarão, de fato, descriminalizados, a exemplo do que ocorreu na Argentina, onde, em 2009, a Suprema Corte decidiu que usar droga é questão de liberdade individual, desde que não cause danos a outros.
O relator do processo é o ministro Gilmar Mendes, e não há previsão de debates em plenário. Mas, mesmo no STF, há risco de o assunto ser engolido pela campanha eleitoral, diz Ilona Zsabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, focado em segurança e desenvolvimento, e integrante da Comissão Global de Política sobre Drogas.
— O que queremos este ano é ter as cartas na mesa para fazer um debate aprofundado, sem polarização. Não pode ser uma questão de proibir tudo ou “liberar geral”. É um caminho do meio — comenta Ilona, corroteirista do documentário “Quebrando tabus”, que teve a participação de FHC. — Desde a lei de 2006, aumentou muito o número de presos por crimes relacionados a drogas. No Brasil de hoje, as drogas estão liberadas, inclusive para menores de idade, o que é um problema. Não está dando certo. Se esse mercado fosse regulado, teríamos controle.
Já os adversários da ideia acham que isso levaria à explosão de consumo, aumentando gastos na saúde para além dos impostos arrecadados.
— É uma ilusão achar que com a legalização e a regulamentação vamos controlar o acesso dos jovens às drogas. Já não fazemos isso com o álcool e o tabaco — afirma Analice Gigliotti, chefe do Serviço de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa da Misericórdia do Rio. — Está comprovado que maconha provoca a morte de neurônios. Em indivíduos vulneráveis, também eleva o risco de surtos esquizofrênicos e, como o tabaco, aumenta o perigo de problemas pulmonares, câncer no trato respiratório e nos testículos.
Diretora-geral de Prevenção da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas (Abrad), Mina Seinfeld de Carakushansky crê que a venda regularizada não evitaria um mercado paralelo, procurado por usuários que não gostariam de se identificar ou que buscassem preços mais baixos:
— É só termos paciência que isso ficará bem claro no Uruguai. Dizer que a guerra às drogas está perdida e que não adianta mais lutar porque todo mundo usa não é válido.
Governo não cogita legalização
No Uruguai, a regulamentação da venda, a ser divulgada esta semana, fornecerá mais subsídios para o debate. As pessoas poderão cultivar 480 gramas da droga, associar-se a clubes de consumidores ou comprar a maconha do governo, a um custo de um dólar por grama. Algo assim está longe de acontecer no Brasil, mas, em seu projeto de lei, Jean Wyllys prevê regulamentação de cultivo controlado, venda e uso da maconha recreativa e medicinal e anistia a presos já condenados por tráfico e sem vínculo com outros crimes. Ao propor mudanças na legislação que acredita serem importantes para o debate da saúde e da segurança pública, ele diz saber que poderá angariar oposições radicais. Mas afirma:
— Se eu não me reeleger, não tem problema. Não sou deputado. Eu estou deputado.
Ilona Zsabó pensa que a recente divulgação sobre os efeitos medicinais da maconha pode amenizar o preconceito. A decisão judicial que obrigou a Anvisa a liberar o medicamento com base no CBD para uma criança de 5 anos com epilepsia teve grande repercussão. O medicamento reduziu a frequência de suas convulsões drasticamente. Os efeitos medicinais de derivados da maconha, aliás, são bastante reconhecidos em países como o Canadá, cujo governo começou em setembro uma produção em larga escala de maconha medicinal.
— Temos que deixar esse preconceito inventado nos anos 1930. A maconha era usada como remédio na Antiguidade, a ciência está redescobrindo coisas sabidas há milênios — critica o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Ainda longe de se envolver em debates sobre flexibilização, o Executivo federal continua a investir no combate ao tráfico. O secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, considera a discussão importante, mas esclarece que o governo não trabalha com a hipótese da legalização:
— Temos que ter, cada vez mais, equilíbrio entre redução de oferta e redução de demanda.
Os ventos de flexibilização da política em relação à Cannabis sativa, que sopram fortemente no Uruguai e em estados americanos como Colorado e Washington, chegaram ao país. Em outubro do ano passado, um juiz de Brasília já tinha absolvido um homem flagrado com 52 trouxinhas de maconha e acusado de tráfico, ao entender que a portaria do Ministério da Saúde que inclui a erva no rol de drogas proibidas é inconstitucional. E, no Congresso, dois projetos de lei dão nova força ao debate. Em fevereiro, o deputado federal Eurico Júnior (PV-RJ) propôs liberar a plantação de maconha em residências, além do cultivo para usos medicinal e recreativo. Mês passado, o também deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) foi mais longe, com um projeto que regulamenta produção e venda de maconha.
O termômetro no centro de poder nacional indica que este ano, com eleições executivas e legislativas à vista, nada disso será votado. Mas toda essa movimentação reflete intensas transformações em torno do assunto. Enquanto, no Colorado e em Washington, a comercialização da droga por particulares foi liberada e rende lucros e impostos, o governo uruguaio deve divulgar até a próxima quinta-feira a forma como as autoridades locais cultivarão e venderão, controladamente, a maconha.
— Não digo que devemos seguir o Uruguai, mas não podemos ficar do jeito que estamos. Perdemos a guerra contra as drogas. O jeito agora é descobrir como reverter a derrota — comenta o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que vai promover uma série de audiências públicas para, até o fim do ano, produzir um relatório sobre a maconha que será entregue à Comissão de Direitos Humanos do Senado. — Há várias questões a responder. A maconha leva às drogas pesadas? Até que ponto estamos sacrificando pessoas que precisam de medicamentos com base na planta?
Esse relatório foi motivado por uma petição on-line no site do Senado que reuniu 20 mil assinaturas. São pessoas que pedem mudanças na legislação. Hoje, vale no país o artigo 28 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Segundo o texto, porte de drogas para consumo pessoal não deve ser punido com prisão. Mas a lei também diz que, para diferenciar uso de tráfico, o juiz deve atentar à quantidade, ao local e às condições do flagrante, além das “circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Sem jamais especificar a partir de que quantidade de droga se configura o tráfico.
— Quando a polícia pega uma pessoa preta, pobre, diz “você não é usuário, é traficante”, e ela vai para a cadeia. Mas, se o usuário for de classe média, não vai — analisa o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, coordenador da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. — As drogas no Brasil são formalmente proibidas mas, na prática, não, o que é gravíssimo. É um faz de conta. Melhor é regulamentar e educar, e agora o Brasil está acordando. Vamos discutir, vamos quebrar o tabu, ver do que se trata.
FHC sabe que, em ano eleitoral, “se for discutir esse assunto vai virar ‘cara ou coroa’, e não é assunto partidário, é de saúde pública”. O tema divide opiniões no Parlamento, onde muitos se opõem a sequer debater uma mudança. O Poder Legislativo, contudo, não é o único caminho para a flexibilização, dizem especialistas. Está em trâmite no Supremo Tribunal Federal recurso extraordinário da Defensoria Pública de São Paulo contra a condenação do presidiário Francisco Benedito da Silva à prestação de serviços comunitários após ser flagrado com maconha numa cadeia em Diadema (SP).
No recurso, a defensoria questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343 com o argumento de que fere o direito à intimidade e à vida privada. Em dezembro de 2011, o STF reconheceu a chamada “repercussão geral” da questão, o que significa que casos semelhantes em todas as instâncias da Justiça deverão seguir a decisão da Corte. Se, no julgamento do recurso, o Supremo decretar a inconstitucionalidade do artigo que prevê punição a usuários, porte e consumo estarão, de fato, descriminalizados, a exemplo do que ocorreu na Argentina, onde, em 2009, a Suprema Corte decidiu que usar droga é questão de liberdade individual, desde que não cause danos a outros.
O relator do processo é o ministro Gilmar Mendes, e não há previsão de debates em plenário. Mas, mesmo no STF, há risco de o assunto ser engolido pela campanha eleitoral, diz Ilona Zsabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, focado em segurança e desenvolvimento, e integrante da Comissão Global de Política sobre Drogas.
— O que queremos este ano é ter as cartas na mesa para fazer um debate aprofundado, sem polarização. Não pode ser uma questão de proibir tudo ou “liberar geral”. É um caminho do meio — comenta Ilona, corroteirista do documentário “Quebrando tabus”, que teve a participação de FHC. — Desde a lei de 2006, aumentou muito o número de presos por crimes relacionados a drogas. No Brasil de hoje, as drogas estão liberadas, inclusive para menores de idade, o que é um problema. Não está dando certo. Se esse mercado fosse regulado, teríamos controle.
Já os adversários da ideia acham que isso levaria à explosão de consumo, aumentando gastos na saúde para além dos impostos arrecadados.
— É uma ilusão achar que com a legalização e a regulamentação vamos controlar o acesso dos jovens às drogas. Já não fazemos isso com o álcool e o tabaco — afirma Analice Gigliotti, chefe do Serviço de Dependências Químicas e Comportamentais da Santa Casa da Misericórdia do Rio. — Está comprovado que maconha provoca a morte de neurônios. Em indivíduos vulneráveis, também eleva o risco de surtos esquizofrênicos e, como o tabaco, aumenta o perigo de problemas pulmonares, câncer no trato respiratório e nos testículos.
Diretora-geral de Prevenção da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas (Abrad), Mina Seinfeld de Carakushansky crê que a venda regularizada não evitaria um mercado paralelo, procurado por usuários que não gostariam de se identificar ou que buscassem preços mais baixos:
— É só termos paciência que isso ficará bem claro no Uruguai. Dizer que a guerra às drogas está perdida e que não adianta mais lutar porque todo mundo usa não é válido.
Governo não cogita legalização
No Uruguai, a regulamentação da venda, a ser divulgada esta semana, fornecerá mais subsídios para o debate. As pessoas poderão cultivar 480 gramas da droga, associar-se a clubes de consumidores ou comprar a maconha do governo, a um custo de um dólar por grama. Algo assim está longe de acontecer no Brasil, mas, em seu projeto de lei, Jean Wyllys prevê regulamentação de cultivo controlado, venda e uso da maconha recreativa e medicinal e anistia a presos já condenados por tráfico e sem vínculo com outros crimes. Ao propor mudanças na legislação que acredita serem importantes para o debate da saúde e da segurança pública, ele diz saber que poderá angariar oposições radicais. Mas afirma:
— Se eu não me reeleger, não tem problema. Não sou deputado. Eu estou deputado.
Ilona Zsabó pensa que a recente divulgação sobre os efeitos medicinais da maconha pode amenizar o preconceito. A decisão judicial que obrigou a Anvisa a liberar o medicamento com base no CBD para uma criança de 5 anos com epilepsia teve grande repercussão. O medicamento reduziu a frequência de suas convulsões drasticamente. Os efeitos medicinais de derivados da maconha, aliás, são bastante reconhecidos em países como o Canadá, cujo governo começou em setembro uma produção em larga escala de maconha medicinal.
— Temos que deixar esse preconceito inventado nos anos 1930. A maconha era usada como remédio na Antiguidade, a ciência está redescobrindo coisas sabidas há milênios — critica o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Ainda longe de se envolver em debates sobre flexibilização, o Executivo federal continua a investir no combate ao tráfico. O secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, considera a discussão importante, mas esclarece que o governo não trabalha com a hipótese da legalização:
— Temos que ter, cada vez mais, equilíbrio entre redução de oferta e redução de demanda.