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O fato é que tudo ainda é muito impreciso. Não há, ou melhor, não havia um estudo que verificasse os impactos do desastre nas instituições de ensino superior do Haiti, até que um grupo de pesquisadores, coordenado pelo professor Omar Ribeiro Thomaz, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, passou a se debruçar sobre o problema. Para desenvolver as pesquisas foi enviado a campo o professor Sebastião Nascimento, que possui larga experiência em pesquisas temáticas no Haiti, tendo inclusive morado naquele país, além de falar o crioulo, idioma amplamente utilizado pela maioria dos haitianos.
Segundo o professor Thomaz, há grupos internacionais, principalmente americanos e canadenses, que estão trabalhando na mesma pesquisa. A diferença é que o grupo brasileiro é o único em campo; os demais coletam dados a partir de terceiros, principalmente do governo do Haiti.
Thomaz estava no Haiti durante os tremores de terra liderando um grupo de alunos da Unicamp que fazia uma disciplina de treinamento em pesquisa de campo em áreas de conflito e pós-conflito. "Estávamos na capital, em Porto Príncipe, quando fomos surpreendidos pelo terremoto. A situação era, sobretudo, incerta. Não sabíamos como agir ou o que poderia acontecer diante daquela catástrofe", relata o professor.
Antropólogo, Thomaz descreve uma profunda angústia no retorno ao Brasil, na medida em que estava abandonando o lugar pelo qual sentia um imenso afeto. "Quando chegamos aqui, encontrei o professor Sebastião e, logo no segundo dia, estávamos preparando a viabilidade da próxima visita. Pela nossa experiência como cientistas sociais, achamos que poderíamos contribuir, nesse momento, oferecendo um diagnóstico que medisse os impactos da destruição no ensino superior", explica.
Vinte e três dias depois da tragédia, o professor Sebastião Nascimento estava no Haiti visitando universidades, escolas e instituições de ensino superior para tentar entrar em contato com alunos, funcionários e professores. "Recebemos a informação de que nada neste sentido estava sendo feito ou preparado e não havia qualquer perspectiva de que isso fosse acontecer", conta Nascimento.
Também havia, por parte do grupo de pesquisadores brasileiros, a convicção de que os diagnósticos que começariam a ser realizados, fossem sobre qualquer campo, não seriam suficientes. "A nossa experiência prévia é de que geralmente os diagnósticos são feitos a partir de informações colhidas de segunda ou terceira mão, não in loco", afirma Thomaz.
Outro ponto da pesquisa consistia em envolver uma rede de estudantes haitianos no processo. E foi durante os 20 dias que passou no Haiti, logo após o terremoto, que o professor Sebastião Nascimento conseguiu envolver e mobilizar os alunos.
Aideia do diagnóstico contou rapidamente com o apoio da Unicamp e o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O estudo também terá o objetivo de apresentar recomendações ao governo brasileiro para uma proposta de cooperação e de intercâmbio acadêmico entre Brasil e Haiti. Para isso, há um projeto da Capes para oferecer 500 bolsas em universidades brasileiras, favorecendo estudantes haitianos que estejam impossibilitados de seguir os estudos.
"Essas bolsas não poderão ser distribuídas indiscriminadamente ou fazendo uso de expedientes que não respeitem as demandas dos próprios estudantes. Por isso, mais do que nunca, precisamos de alguém em campo que nos diga quais foram os centros mais afetados", explica Thomaz.
O trabalho da equipe não deve parar por aí. As relações entre as instituições de ensino superior dos dois países devem incluir um intercâmbio bilateral, permitindo o recebimento de estudantes e professores do Haiti nos centros de ensino brasileiros, além do envio de mestres e alunos brasileiros para aquele país.
O grupo de pesquisadores já apresentou à Capes um primeiro documento com dados preliminares e um conjunto de recomendações, no que diz respeito à implementação das bolsas. O próximo passo da equipe será a apresentação, em abril, do primeiro relatório que deve, efetivamente, orientar e abastecer a Capes com dados oficiais coletados diretamente no Haiti.
O diagnóstico estará focado inicialmente nas cidades da região metropolitana e outras quatro que abrangem a área afetada pelo terremoto. A ideia é expandir o estudo para locais que não foram atingidos pelos tremores. O professor Nascimento explica que mesmo os campi afastados da capital eram mantidos pela unidade de Porto Príncipe, existindo uma interdependência em que estudantes e mestres frequentavam os dois polos.
O Haiti conta com apenas uma Universidade Pública de Estado (UEA), abrangendo cerca de 20 mil alunos. Entre as instituições privadas, os primeiros dados coletados pelo grupo da Unicamp in loco apontam que havia um total de 52 instituições reconhecidas pelo governo, mas a situação no país já era frágil. "Além destas, havia cerca de outras 120 que se autodenominavam universidades. Nem todas eram reconhecidas, mas possuíam um grande número de alunos e eram bastante prestigiadas", conta Nascimento.
Recém-chegado do Haiti, o professor diz que a situação ainda é bastante precária. Mesmo as instituições de ensino superior que não desabaram com o terremoto estão com a estrutura bastante comprometida. A situação é de falta de infraestrutura para abrigar aulas, alunos e professores. "Hoje, todos os estudantes da Universidade de Estado, que está completamente paralisada, estão fora da sala de aula. Jamais houve na história do Haiti um momento de tamanha interrupção do ensino superior quanto agora", revela o pesquisador.
Por outro lado, questionados sobre a recuperação do ensino superior no Haiti, os dois pesquisadores são categóricos ao afirmar que as entidades privadas serão as primeiras a se reerguer e a normalizar suas atividades, em contraposição a um governo com dificuldades para se reerguer.
"Em curto prazo acreditamos que haverá uma resposta mais rápida do setor privado, mas ao mesmo tempo haverá uma retração. Muitas instituições privadas eram iniciativas de professores que fizeram sua formação no exterior, com experiência profissional destacada e que retornaram ao Haiti para abrir instituições de ensino. Muitas dessas pessoas morreram no terremoto. Mesmo assim, o setor particular deve se recuperar mais rapidamente, apesar dessa retração", acredita Nascimento.
A tese é embasada no fato de algumas instituições de ensino canadenses e americanas, dentre outras, já estarem firmando compromissos com grandes universidades privadas do Haiti. "Algumas têm, por exemplo, um plano de retomar as atividades em tendas", afirma o professor Nascimento.
Já o ensino superior público deve se deparar com a lentidão do aparato haitiano, conhecida mesmo antes da tragédia. No entanto, ocorre uma grande mobilização por conta da intensa pressão social para que a Universidade de Estado retome suas atividades o mais rápido possível.
"Já houve a formulação de um plano, que tinha sido proposto anteriormente ao terremoto, mas que nunca havia sido colocado em prática, que consiste em concentrar os polos temáticos das faculdades", explica o professor Nascimento.
Enquanto as decisões do governo não são colocadas em prática, alunos da Faculdade de Ciências Humanas se mobilizam montando um campus de refugiados no terreno onde ficava a faculdade, promovendo grupos de discussão e tentando retomar as atividades com os poucos professores sobreviventes que aparecem no prédio. Há ainda os estudantes de psicologia que organizaram uma série de oficinas para o tratamento de traumatizados do terremoto.
"Nessas tentativas de retomada da normalidade, a gente vê uma série de iniciativas partindo dos próprios estudantes e dos professores, sem precisar utilizar os prédios, mas sim a referência do que era a faculdade", reflete Nascimento.
A história do ensino superior no Haiti sempre foi pautada por períodos conturbados, costurados por diversos regimes autoritários em que ditadores submetiam a universidade à figura do governo. Por isso, a situação se tornou tão preocupante.
"Das instituições haitianas, a universidade foi a que mais sofreu com os períodos autoritários, que incluíam desde perseguição, fuga e assassinato de professores", lembra o coordenador da pesquisa, o professor Omar Ribeiro Thomaz.
Mas, segundo ele, foi em meio às pressões do governo que as faculdades também se transformaram em pontos de resistência aos regimes autoritários. O ponto alto, com perseguições e mortes a professores e alunos, se deu entre 1991 e 1995, durante um dos mais sangrentos golpes de Estado. "Isso, no entanto, formou uma classe intelectual marcada por uma vitalidade e estudantes com uma grande ansiedade pelo aprendizado", destaca Thomaz.
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