3 de setembro de 2011

"A universidade brasileira é arcaica e valoriza o catedrático em vez do jovem" : Miguel Nicolelis


03 de setembro de 2011
Educação e Ciências | Gazeta do Povo | Caderno G | PR

Antônio Costa/Gazeta do Povo



Miguel Nicolelis, neurocientista
Depois de 35 anos, Miguel Nicolelis voltou a Curitiba em agosto. Participou de um evento sobre educação, fez uma palestra de lançamento de seu livro (Muito Além do Nosso Eu) e deu uma entrevista para o G Ideias. Veja abaixo os principais pontos da conversa:
Como será o exoesqueleto que permitirá a quadriplégicos andarem novamente?
Está em construção na Alemanha, em Munique. É como uma roupa de astronauta, só que mais leve, mais próxima do corpo, não tão grande. Mas ela tem motores. Tem um material que é leve, mas rígido, para permitir ao corpo ter sustentação.
E a parte neurológica do projeto, em que pé está?
A parte neurológica a gente está demonstrando em estudos em macacos. Estamos trabalhando na capacidade neurofisiológica para controlar os componentes dessa veste. E agora estamos começando estudos em que os macacos vão aprender a controlar o corpo todo. Ou seja, vão aprender a andar.
É possível fazer tudo funcionar até 2014?
Ainda é possível. Nós temos que ter uma definição rápida do governo brasileiro. Eu já conversei com a presidente [Dilma Rousseff], ela gostou muito do projeto, me pediu para voltar com mais detalhes, que é o que eu vou fazer. Estamos numa equipe de quase 50 pessoas aqui, nos Estados Unidos e na Europa.
O papel do governo seria ajudar no financiamento?
Sim. Nós estamos tentando um financiamento misto, público e privado. É um projeto bem barato, comparado com o que vai custar cada estádio da Copa do Mundo. Comparado com o que vai ser gasto no estádio do Corinthians não é nada.
Quanto custará o projeto no total?
Não tenho um número final. Sabemos que é na casa dos milhões de dólares. Mas é uma tecnologia que vai impactar milhões de pessoas. E, se for produzida em série, o preço vai cair muito.
Quem pagaria por um sistema como esse? Certamente não poderia ser o usuário final...
Exato. Quem vai pagar são os sistemas de previdência. Cada vez mais você tem sistemas nacionais de previdência -- com exceção dos Estados Unidos, que não conseguem ver a luz.
Quanto falta para se construir uma mão robótica que responda a comandos do cérebro?
Tudo depende do número de movimentos que você deseja fazer. Alcançar e agarrar um objeto é mais fácil, por exemplo, do que tocar piano, mexer todos os dedos. Ninguém fez ainda uma demonstração convincente de controle cerebral direto com movimentos finos dos dedos. É possível, vai acontecer. Só que você precisa de um número de neurônios muito grande na comparação com as centenas de neurônios que a gente usa atualmente. Nosso laboratório está cruzando hoje a barreira dos mil neurônios. E é a maior quantidade que já se conseguiu no mundo. O segundo laboratório no mundo chegou a 50. Mas estamos estimando que você vai precisar de 10 mil a 20 mil neurônios para começar [a mexer uma prótese de mão]. Mas a tecnologia está aumentando muito rapidamente.
O senhor disse que a instalação de um polo de tecnologia em Natal era o início de um projeto maior. E que era possível transformar o Rio Grande do Norte na "Califórnia brasileira". Isso é possível?
Está acontecendo. Nós tivemos um investimento no Rio Grande do Norte de mais de R$ 120 milhões. E o projeto da Cidade do Cérebro é um projeto de R$ 2 bilhões. É uma arquitetura que seria comparável a qualquer parque tecnológico americano. Aqui no Brasil a gente tem vários projetos de parques tecnológicos, mas o problema é essa noção de que construir parques tecnológicos é erguer paredes. E a construção civil brasileira é ótima. Mas essa é a parte mais fácil. O complicado é povoar isso. E não é com qualquer cérebro. É com gente que pense diferente. A nossa cultura não é empreendedora. É por isso que nós começamos pelas escolas. Precisamos ter uma geração de pessoas que pense diferente, que não tenha medo do risco, que não tenha medo de propor projetos impossíveis. Nosso problema sempre foi de não fazer coisas grandiosas por medo de falhar.
Os cientistas brasileiros pensam pequeno?
Na maioria dos meus encontros com cientistas brasileiros, eles querem discutir o edital, querem discutir a norma, se pode ou se não pode, se tem mil reais para a gente viajar... E eu aí já passei horas em reunião, até perguntar: A gente vai falar de ciência quando?
O senhor é um entusiasta do atual governo. É mais fácil discutir ciência no Brasil hoje?
Para mim tem sido mais fácil. Eu não posso avaliar nada porque são oito meses. E em ciência e tecnologia isso não é nada. Não dá para saber. Mas, por exemplo, o anúncio desse programa sem fronteiras que vai mandar 65 mil brasileiros para o exterior, com US$ 2 bilhões em bolsas de estudo, teve um impacto mundial muito grande e é muito importante para o Brasil. As universidades estão equipadas. Mas precisa mudar muita coisa, porque a universidade brasileira ainda é muito arcaica. Nós não valorizamos o jovem, valorizamos o catedrático, o ex-catedrático. Mas a gente realmente não tem a cultura como nos Estados Unidos de abraçar os jovens cientistas e oferecer a ele as condições de atuar.
O que precisa mudar nas universidades? É muito difícil você gastar dinheiro, mesmo quando tem. Trata-se de projetos científicos no Brasil como se trata de grandes projetos de infraestrutura, de usinas hidrelétricas. Pesquisa científica tem que ser ágil, você tem que poder gastar dinheiro e não pode ter que gastar pelo preço mais baixo. Eu trabalho nos Estados Unidos com milhões de dólares, com dinheiro público. E, claro, tem todos os mecanismos de controle, mas mecanismos locais. São equipes dentro das universidades. Eu telefono à tarde. Se pedir material de consumo, no outro dia está lá. Se for equipamento, leva alguns dias. A pesquisa que eu faço nos Estados Unidos é quase inviável de se fazer aqui no Brasil. Qualquer minúscula mudança de caminho você tem de pedir permissão para o Papa. E aí leva meses para você mudar o processo.

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