30 de outubro de 2011 Educação e Ciências | Diário de Natal | Cidade | RN Julho de 1999. O filósofo alemão Peter Sloterdijk realiza uma comunicação polêmica durante colóquio dedicado aos pensadores Heidegger e Lévinas. No seu artigo Regras para o parque humano, a ideia de que a ciência deveria atuar conscientemente sobre a seleção, sobre um corpo e uma natureza abertas à intervenção técnica. Aproximava-se por um viés rapidamente acusado de fascista das reflexões de Nietzsche: se podemos tornarmos melhores, por que não fazê-lo? Entre os dedos acusadores estavam os do filósofo Habermas. Sem citar Sloterdijk, em O futuro da natureza humana, Habermas denuncia as possibilidades de a "antropotécnica" gerar diferenças entre os seres humanos unicamente regidas pelo mercado. Julho de 2011. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, 50 anos, lança o livro Muito além do nosso eu. Bem recebida, a obra traz um subtítulo cuja leitura dificilmente não nos remeteria à polêmica Habermas-Sloterdijk: "A nova neurociência que une cérebro e máquinas - e como ela pode mudar nossas vidas". No cenário deste cientista da Universidade de Duke (onde lidera o Duke's Center for Neuroengineering), experiências avançadas com implantes de microeletrodos neurais em macacos. Nas projeções futuras, derivações desses experimentos, um mundo onde as pessoas usam computadores, dirigem carros e se comunicam através do pensamento. Confira nesta entrevista alguns dos limites e "ilimites" do trabalho desse cientista que tem um projeto ambicioso: fazer um paralítico chutar uma bola na Copa de 2014. Por que essa atenção sobre o movimento do corpo e não outras áreas do cérebro, como as responsáveis pela memória, a fala ou a visão, por exemplo? É uma questão circunstancial. Estávamos tentando entender como o córtex motor gera os programas motores necessários para que o corpo possa se mover. Esse era o foco, mas nosso laboratório estuda outras áreas, outros sistemas, outros circuitos. Isso não quer dizer que a razão pela qual eu tenha especificado o estudo do sistema motor não é porque a gente acredite que ele seja mais essencial que outros sistemas. A ideia era demonstrar como circuitos neurais codificam informações e o sistema escolhido foi o motor porque as demonstrações eram mais simples. Basicamente foi uma escolha porque tínhamos a noção de que era mais fácil monitorar movimentos do que qualquer outro comportamento e nós queríamos demonstrar a tese de que populações de neurônios eram fundamentais para a gênese e desenvolvimento do sistema motor. Sua pesquisa é um exemplo privilegiado onde a disputafilosófica Sloterdijk-Habermas encontra alguns pontos de apoio (em seus exercícios imaginativos você cita a possibilidade de criar humanos que não se pareçam mais humanos). Como você vê a questão transumanista? Eu não conheço essa discussão; então fica difícil de posicionar minha pesquisa em relação a ela. A minha pesquisa tem dois motivantes: entender como o cérebro funciona e gerar terapias para tratar pacientes com problemas neurológicos altamente debilitantes. Essas discussões esotéricas, teóricas, realmente não são a minha praia. Eu deixo para os filósofos perderem tempo com isso. Eles têm bastante tempo na mão. Então, eles têm que fazer alguma coisa com ele. Qual o papel da imaginação na pesquisa científica? Li certa vez que você foi aconselhado a suprimir passagens de artigos nos quais imaginava cenários futuros, saltos ainda não possíveis. Tem alguma relação especial com esse tipo de literatura? Com que grau de ficção atua um cientista? Sua hipótese de cérebro relativista, ou seja, não aberto ao método cartesiano de análise, é bem poética e se relaciona com essas novas formas de "narrar" a descoberta científica? Cresci lendo ficção científica, no anos 70, 80, antes da ficção científica virar sinônimo apenas de violência. Isaac Asimov, Star Trek# Penso que a imaginação é essencial para o cientista. Faz parte do cotidiano. E o método científico de forma alguma é antagônico à expressão da imaginação e da criatividade. Os formalismos criados e incentivados hoje em dia para disseminação da literatura científica são muito conservadores e eles impedem que autores, como eu, por exemplo, que publicam trabalhos científicos, possam realizar exercícios mais imaginativos. Ainda nesse contexto, os revisores que são cientistas e, principalmente competidores seus, geralmente, são ainda mais conservadores. Nessas publicações é muito difícil você extrapolar os seus resultados e fazer conjecturas mais teóricas, é uma coisa bem cerceada. Por isso, sempre tive a motivação de escrever um livro onde eu pudesse ter liberdade total para contar essas divagações em mais detalhes. Uma linguagem que seria difícil de usar numa publicação científica, mas é possível num livro como esse. A metáfora também cumpre um papel importante em sua reflexão. Por que a predileção por jogos de futebol? Quais semelhanças estão em jogo? Usar o futebol como metáfora é muito bom porque todos entendem de futebol por aqui. Fica uma coisa mais concreta, mais fácil de entender. Eu particularmente gosto muito de futebol e é uma forma de mostrar que a ciência também pode ser comunicada em um linguajar corriqueiro, cotidiano, sem perder a sua essência, a sua missão. As metáforas são importantes porque os fenômenos naturais basicamente descrevem os princípios científicos na sua realização prática. Uma jogada de um time de futebol ajuda a gente a entender o que é uma propriedade emergente de um sistema complexo. Ao invés de falar em jargão neurocientífico, eu preferi, no livro, falar em uma linguagem na qual as pessoas comum pudessem entender. Você faz parte de uma onda recente de vulgarização da neurociência, talvez iniciada com mais força por Francisco Varela e Humberto Maturana. É difícil falar de diferença entre mente e cérebro sem descambar para o misticismo? Não acho difícil. Muito pelo contrário, acho muito plausível falar em termos científicos de todos esses assuntos. O problema é que alguns deles são extremamente complexos e temos muito pouco conhecimento concreto: como a consciência emerge do cérebro é uma das questões mais importantes da neurociência, mas os neurocientistas não têm uma visão muito clara disso. A gente sabe que se trata de uma propriedade emergente, mas não sabemos como ela emerge, quais são os mecanismos. Mesmo porque os mecanismos muito provavelmente não são mecanismos triviais. São mecanismos estatísticos provavelmente e essa linguagem é muito difícil de ser traduzida, quer seja pela matemática, quer seja por uma série de sentenças através das quais as pessoas pudessem entender imediatamente. Não acho que as explicações místicas oureligiosas tenham grandes vantagens sobre as nossas (científicas) porque elas (as explicações religiosas) não explicam nada. Elas (as religiosas) só trazem à tona preconceitos e visões muito pouco reais do que esses fenômenos são. Eu não acredito que a ciência perca nada em comparação com as visões religiosas ou místicas da mente humana. A única coisa que eu diria é que ambos os lados partilham da mesma ignorância. A ideia de um tetraplégico dando um chute em uma bola na abertura da Copa ainda está de pé? Gostaria de falar sobre os avanços e transfor-mações recentes em seu projeto em Natal? Nós estamos nesse momento finalizando esse projeto e aguardando para as próximas semanas um anúncio oficial no Brasil. Acho que existe uma oportunidade concreta de viabilizá-lo, um projeto emblemático, científico-brasileiro ainda mais tendo como sede a periferia de Natal - o Campus do Cérebro, em Macaíba - e seria basicamente algo que há alguns anos muitos achariam impossível: o Brasil realizar um dos maiores projetos científicos de sua história, em uma região notoriamente não envolvida com ciência há até bem pouco tempo. Isso mostra, na minha opinião, o poder transformador que os empreendimentos científicos podem ter na sociedade brasileira. Essa demonstração, não só para o Brasil, mas para o mundo todo, deixaria claro que o talento humano para a ciência e para grandes realizações humanísticas baseadas na ciência está disponível em qualquer lugar. Nós estamos com uma equipe internacional trabalhando com pesquisadores brasileiros dispostos a fazer grandes coisas pela ciência. Aguardamos a conclusão do Campus do Cérebro, no ano que vem, para realmente demonstrarmos o espírito inovador, revolucionário desse projeto Nicolelis é fundador e diretor científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra. Também trabalha voluntariamente no projeto de gestão mista, Campus do Cérebro, ainda em construção na cidade de Macaíba. Em uma cisão recente, o seu Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra perdeu uma dezena de cientistas para o Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O quadro foi recomposto com cientistas brasileiros e estrangeiros. A revista Scientific American elegeu Miguel Nicolelis um dos vinte cientistas mais influentes do mundo. Seu nome é o único entre brasileiros cotado para levar um Prêmio Nobel. O cientista tem um projeto ousado: fazer um tetraplégico chutar uma bola na cerimônia de abertura da Copa de 2014. |
30 de outubro de 2011
Entrevista Miguel Nicolelis
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jorge werthein
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09:25
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